Mulher-Cartão

De manhã, quando eu caminhava distraidamente pela rua que leva ao metrô, tirei da bolsa o cartão que a grande maioria dos paulistanos tem para utilizar o transporte público: o bilhete único. Porém, dentre toda a baderna de um dos bolsos, peguei também o cartão de crédito, o cartão de débito, o cartão da loja x, o cartão da loja y, o cartão alimentação...

Percebi que sou uma mulher-cartão. Quase como Juliana Delmonte da Silva Cartão, já que toda a funcionalidade da minha vida gira em torno de tantos cartões, com seus respectivos números que insistem em provar que eu sou eu e que... existo. É assim que me sinto quando perco um destes benditos cartões. Como sacar dinheiro no caixa eletrônico? Impossível. Mesmo que eu tente diretamente no caixa, tenho que apresentar o RG e comprovar minha idoneidade.

Foi-se o tempo de “pendurar” a conta na venda do Zé. Foi-se o tempo da confiança. Chega a burocracia e finca suas raízes avassaladoras na vida humana. São os tempos do medo – de ser traído, de ser lesado, de ser enganado. Histórias pueris? Pode ser simples alucinação de uma mente esquizofrênica. Alguém que me ama? Provavelmente está interessado em minhas escassas posses. É lamentável que a palavra tenha sido tão intrinsecamente ligada à desconfiança. Palavra de honra? Ninguém lembra mais o significado deste conceito.

Ano passado li um livro interessantíssimo chamado “Elogio a Palavra” de Philippe Breton. Fiquei maravilhada diante das potencialidades descritas sobre esta habilidade tanto falada quanto escrita. O autor mostra os dois lados, tanto a palavra que acaricia quanto a que maltrata. E refletindo, pensei quão ofensivo é ter que provar o que se fala – mesmo isento de culpa anterior.

Portanto, indo contra as descrenças de meu caro colega da Liga, Moacir, e aos evidentes retrocessos da Humanidade (com “h” maiúsculo mesmo), arrisco dizer que os seres humanos ainda são confiáveis e que sim, vale a pena – mesmo quando a alma é pequena.

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