Olhar




óculos

As chamas invadiam o rosto do poeta. Não eram as mesmas chamas que o queimavam por dentro quando a “ Máquina do mundo” se apresentava à ele, ampliando sua inquietação. Essas chamas de agora, vinham do maçarico de um operário, soldando novamente os óculos de bronze, roubados da estátua do poeta. Pois é, mesmo tendo passado tantos anos após sua morte, o poeta da inquietude continua literalmente queimando os miolos. Pela quinta vez em dez meses, a estátua de Drummond no Rio de Janeiro, teve os óculos roubados. A localização da estátua facilita o roubo, mas acho no mínimo apropriado, o local onde ela se encontra: sentada em um banco, no calçadão da praia, entre o concreto e a natureza, como uma rosa do povo. Vandalismo é a primeira palavra que nos vem à cabeça, mas podemos usar essa atitude como uma possível metáfora, referente à função da poesia.
Drummond não utilizava a palavra como um mero instrumento em função da estética ou embelezamento das coisas. Seu texto surgia da inquietação do homem perante “ a máquina do mundo”, ele não nos oferece um mundo belo e conclusivo. Sua poesia arranca-nos o ser e mistura-o às coisas para que possamos entendê-las e sentí-las ou pelo menos não ignorá-las. Talvez o ladrão dos óculos do Drummond, esteja querendo nos mostrar que precisamos, assim como o poeta, não olhar indiferentemente as coisas que nos cercam, mas sentí-las em sua totalidade. Para tal, nenhum óculos com o máximo de grau possível ajudaria, pois sabemos “que no meio do caminho há uma pedra” e somente usando os “outros óculos” que o poeta usava, poderemos sentí-la e não necessariamente ultraprassá-la, mas utilizá-la na infinita construção do nosso ser.

Ninil-Zé
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Comentários

Anônimo disse…
Gostei. Deve ser as vezes divertido observar os fatos do cotidiano através desse olhar seu.
Triste algumas vezes, mas tbm divertido.

ass: Moacir