A décima sétima carta.



art by *LaDameDePique


Ela não desaparece durante o dia.
Somente oculta-se dentro dessa claridade incômoda, protegida por grandes óculos escuros, profundamente negros e impenetráveis. Eles são emoldurados por hastes cor de rosa.

Neles jaz a derradeira defesa da alma e a última proteção contra todo aquele excesso.
De luz. De nada.
Ela... A décima sétima carta, espera impaciente toda essa luz se dissipar, aguarda o tempo passar porque sua história é escrita com maior intensidade à noite, quando o Sol cede seu lugar a milhares de outras estrelas.
Solitárias, azuis, de neon, ruivas, quasares, boêmias, artistas, perdidas, negras, binárias, vadias... Uma infinidade de estrelas habitantes desse universo noturno.

Esses corpos celestes, essas outras tantas estrelas, brilham somente ao anoitecer e cada uma delas é única e prodigiosa. Algumas sei, são mais únicas do que outras.
Fato que leva-me a concentrar-me e buscar entre elas apenas uma. Eu quero somente uma.
E para capturá-la, para descrever esse determinado fragmento celeste com retidão, eu teria que ser perfeito... mas... mal sou humano o que se dirá de perfeito.

Seria necessário aprisionar em cada linha uma essência que é livre em sua criação e só existe em plenitude quando está assim. Livre.
Teria que ter sentimentos para poder unir-me a milhares de sensações que rodeiam a estrela. Pontos que abandonei. Teria que adquirir alma...Calma. Objetos que não disponho no momento.
Por fim, crucial, seria crer que existem outras tantas estrelas como ela nessa noite vazia em que a maioria das pessoas sobrevive e essa certeza já justificaria a criação de qualquer poema, conto ou vida. Aceitando isso eu poderia continuar, porque então, saberia ser ouvido e que existiria uma razão para acreditar.
Mas não creio, rezo ou confio.
E lembro-me que esse texto não deve falar sobre a décima terceira carta, mas sim sobre a estrela.

Prometo tentar esquecer tudo o que me detêm. Isso eu creio, ainda posso fazer, ao menos por mais alguns minutos devo fingir que entendo o que é de fato ser humano e prosseguir.

A Estrela.
Algo a acorda às 7:30 da manhã, nos minutos seguintes ela não está realmente pensando quando olha as horas e decide voltar a dormir, cobrindo a cabeça com parte do edredom. Refugiada na cama ela dissolve-se, está cedo demais para acordar e sair para um mundo que sempre diz as mesmas coisas.
Segundos se passam até que os olhos dela voltem a se fechar.

Não existe um sonho claro nesse ponto, apenas o tempo que prossegue e no que parece ser o passar de 3 minutos, estoura o ruído intermitente do relógio trazendo-a de volta a vida. Agora são 8:30 da manhã, ao enxergar os números entre o cabelo desalinhado que cai a frente de seu rosto, ela percebe que está mais uma vez atrasada.
Na vida dela existe constantemente essa sensação de estar errada.
Fora de seu tempo, espaço, época e propósito.
Talvez o lugar dela fosse um século a mais ou um a menos, mas não é aqui. Não é agora.
 
Me pergunto, se as vezes, ela pede para não acordar. Se ela sente como é tentador esquecer os dias e noites anteriores e despertar, livre de qualquer lembrança. Absolvida.
Se ela gostaria de simplesmente não existir em certos dias, nunca mais ter que pensar sobre o que é ou não correto. Certas pessoas nessa vida não tem o direito de fazer algumas escolhas. Imagino que elas estão condenadas a sempre acordar. A existir, haja o que houver.
Não podem esquecer e estão destinadas a ser sempre lembradas.
Inclua-se ai, nessa ausência de meio termo, coisas como as tempestades, os tornados, a escuridão da noite e claro a nossa estrela.

Ela não pode parar.
Ela não deve pensar em desistir, porque pensar demais é outra armadilha que pode consumi-la.

 Sem mais palavras levanta-se e, tentando entender qual foi o caminhão que passou por cima dela na noite anterior, toma um banho vaporoso, preparando-se para sair. A água é um alívio.
A vista turva e esse amargor na boca vem das três horas mal dormidas e das vinte e uma horas acordada. Vem de cigarros, destilados e demais psicotrópicos que sejam comburentes para alimentar seu espírito ígneo tão incontrolável.
Esses são os fatores tangíveis, porém, a sensação mais forte que ela tem, não vem do que foi dito, do que pode ser tocado e é simples; vem de palavras que você escuta e que ninguém nesse mundo tinha o direito de dizer ou daquelas que você quer escutar e que não são ditas nunca.


O café é rápido, as poucas frases trocadas entre ela e as outras pessoas que dividem a casa são breves. Dentro de uma família muitos verbos são conjugados: errar, amar, gostar, odiar.
Pessoas que conjugam por tempo demais o verbo sentir, podem terminar atingidas por seu peso. 

Então ocorre um silêncio e elas esquecem certos tempos verbais como aqueles relacionados a amar. Eu esqueci o verbo perdoar, no singular e plural, essencialmente a primeira pessoa do singular.
Normalmente quando caem nesse silêncio, as pessoas procuram um novo ruído contínuo que ocupe o vácuo criado. Um barulho qualquer que impeça que algo doloroso seja ouvido. 


Por isso os fones nos ouvidos são colocados antes mesmo dela passar pela porta. Antes dela sair, sem se despedir. Para preencher esse intermitente vazio.


As pessoas que ela encontra no metrô parecidas e ao mesmo tempo distantes. Quietas ou excessivamente ruidosas, parecem anestesiadas pelo excesso ou pela falta de algo.
Uma multidão dormente, ansiosa por um propósito. 

A espera de amores que nunca terão a chance de acontecer, de coisas que não serão vistas, de lembranças que jamais irão acontecer.

Nesse instante imediato a única certeza da estrela é que ela não quer terminar assim.
Melhor seria arder em uma grande explosão do que morrer assim, aos poucos, em doses diárias.
Assassinas e mesquinhas.

Sem nada mais que seja realmente importante o dia dela prossegue e depois de algumas horas já está fadado a terminar. Existe o trabalho, comida, perguntas, mas podemos passar direto por esses lugares. Eles existem por modulação automática. São apenas placas na estrada, sinais entre de onde você sai até onde quer chegar.
Repletos de perguntas previsíveis, respostas repetidas e uma sensação sufocante de que tudo que poderia ser dito; já foi. Tudo o que poderia fazer alguma diferença; já fez.
O que era realmente importante; já é e não resta nada novo.
Termina.

Obrigado Deus por matar mais um dia. O sol se põe. Vem a noite.
E agora tudo torna-se possível. Foda-se se isso é ou não verdade. Ilusão ou realidade.

Agora tudo é possível.
Essa é a hora dela existir plenamente e deixar essa luz sair. Sem parar. Sem hesitar.
Começa.
Os timbres diferentes de vozes nos telefones, chamando-a para o inferno e céu nosso de cada noite.
Rogai por nós pecadores, porque agora, entregues ao gosto do primeiro cigarro e a fumaça branca que escapa entre os dentes, nós dizemos: Tudo é possível! 
Tem piedade de nossa alma porque nós não vamos ter.

Como é boa a sensação das luzes passando, o ar noturno que invade as janelas baixas dos carros, entrando e trazendo consigo esse gosto de imediato. Aqui não há um futuro.
Só existe o presente, amarrado com laços vermelhos e fitas púrpuras.
Os pulsos de luzes passando rápidas no asfalto das avenidas vazias... Agora que é escuro e que todos abandonaram a cidade em troca do conforto e marasmo das casas, tudo é possível. Não existe mais a presença do inconsciente coletivo barrando o avanço da loucura, caos e prazer.

Todas as luzes esguias, refletidas nos carros e ruas. Correndo para entrarem em alguma festa.
O gosto do primeiro copo tem um sabor precioso.

Me convença que você não sabe exatamente como é isso.

É melhor do que cicuta, é um veneno doce que incendeia os pulmões e gela a nuca. 

Vai matar na boca dela tudo o que ela quer, precisa ou sente falta e quando não restar nada, nessa hora, começaremos realmente a falar sério.
Ela vai provar a liberdade que nasce da perda iminente.


A vibração grave da música sob o tecido, invadindo o corpo, reverberando dentro dos pulmões. Amparada em luz negra e escuridão. O suor e a respiração ofegante hora após hora. É como morrer e voltar e voltar.

Vive-se assim, sentindo dor, pulsando, para se ter certeza que tudo isso não é somente um devaneio.
Vive-se assim, quando não existe mais ar e a dor confirma que você está vivo, que tudo isso não é um sonho de um monge ou de uma borboleta azul.
Você está vivo e a beleza máxima desse estado é que dentro dos próximos quinze segundos você pode não mais "estar". 


Toda energia, forças e pulsações acumuladas vão se esgotando.
Quando a força termina, cobra-se mais, pede-se mais... passar esse limite que roça a língua na boca da morte, sem beija-la e sem lembrar da ousadia, para que não se adquira medo e que na noite seguinte um novo beijo seja tentado.
Para a estrela, ao menos para uma parte dela, esse é seu propósito e lugar.


Estar lado a lado com Deus, com o diabo e todos esses anjos anônimos jogados nos cantos dos clubes e mesas, hora como bêbados ou cuidando dos perdidos... Como é bom. Como é doce esse sabor.
Que termina quando o dia começa a nascer e as estrelas começam a desaparecer, voltando para suas casas, famílias, farsas e vidas.
Nossa estrela não vai lembrar exatamente como tudo acabou, só restarão pontos da história, páginas soltas e sem uma aparente ligação entre si. Contos curtos quase anônimos.


É hora de adormecer.
Assim como a luz é trazida quando o dia chega, a estrela é levada para o escuro do quarto e quando finalmente sozinha, ela fecha a porta e senta-se na beirada da cama.

É hora de desaparecer.
Nesse derradeiro momento que antecede o breve eclipse. Ela é tudo.
O colapso a faz desmaiar sob a cama. Com sorte serão boas três horas de sono antes de tudo recomeçar. Estáticos do lado do edredom, três anjos velam seu sono.
Sorrindo com cumplicidade no canto da boca, eles observam a paz adquirida pela estrela e pensam.


Como é bom em algumas noites viver.
Como seria bom ser a estrela.


A história continua.
Ela cobre a cabeça com a colcha, para fugir da luz.
A história irá continuar sempre.


Porque certas pessoas, estão destinadas a serem sempre lembradas. Agora creio que posso deixar de ser humano mais uma vez. Respiro, ainda sentido o amargo do cigarro em minha boca e do absinto.
Creio que já posso parar de sentir. O amargo desaparece perdendo sua importância.

Sabe...
Ela, a estrela e as pessoas como ela...não são a janela que existe em seu quarto. Não são as luzes que você enxerga eventualmente através das grades.
Elas são o céu que existe atrás das paredes, teto e janelas.
Elas são o céu.



...

Comentários

Moacir Novaes disse…
Prometo, meus próximos textos serão bilhetes.
Zé Raimundo disse…
Se forem, me recusarei a ler! Apesar de seus bilhetes serem "bilentes", ou seja, enxergam muito. Não se preocupe com os meus curtíssimos, estou numa fase minimalista. O tamanho de seus textos está perfeito e a qualidade a cada dia que passa, está sendo renovada e ampliada.

"Você está vivo e a beleza máxima desse estado é que dentro dos próximos quinze segundos você pode não mais "estar".

Isso é no mínimo lindo, Moa.
Filipe Ribeiro disse…
"Imagino que elas estão condenadas a sempre acordar"