Fazia dias que não saía de casa. Dias que não comia direito. Aquele cheiro ainda estava nas roupas, nas paredes, no chão, nos móveis, no ar que respirava, na comida, impregnado. Cheiro de putrefação, de carne, de morte, de fantasmas. Não parava de pensar, de lembrar, de chorar. De chorar por dentro, pra si, as lágrimas não tinham força para sair fazia já algum tempo.
Tomou por fim o vinho. E mais três remédios. Nada remediava a dor, a insônia, a lacuna. Não era mais humano, era só buraco. Oco. Andava já curvado, pois o peso dos ossos assim o conduzia. Tinha o mundo nas costas e não sabia para onde ir. A música entrava pelos ouvidos e percorria suas veias, o vinho - o mesmo que tomara em outras datas - era insoso agora, as cores fugidias e um tom de cinza brindava o ambiente de modo peculiarmente bonito contrastando com o avermelhado do carpete.
A linda criatura olha para mim, me sorri, me chama. Deitado no chão, sinto seu toque em meus cabelos, consigo fitá-la, entrelaço meus dedos nos seus. Evanescente.
Não sei mais se é noite ou dia. Não quero saber. Não quero ser. Não quero estar. Não quero morrer. Vejo coisas. Me lavo. Mas a água torna sangue, uma espécie de Caná revisitada. E o cheiro, o perfume putrefato que não sai? Lavei todas as minhas roupas, usei o que poderia haver de mais forte, mas nada arranca esse olor de ferro, que parece estar dentro de mim, como se eu emanasse decomposição. Vomito.
O espelho não me mostra mais. Não sei o que é aquilo que aparece. Uma estranha figura descomposta, feia, informe. Volto a não mais sentir me. Meu corpo todo formiga, olho os arredores. Tudo imutável, tudo irreconhecível. A decoração da dor agulha minha carne. Vejo penduradas como quadros pessoas que não conheço. A tevê liga. Uma mulher fala coisas que não entendo, mas a música continua tocando, a mesma música. É como uma língua qualquer primitiva. Ou talvez não esteja mais entendendo nada. Me esforço, aumento o volume, mas a música não me deixa ouvir com atenção. De onde ela vem? Pra quê tentar entender também? Não quero saber de nada, se não me ouvem, pra que ouví-los?
Vencido pela música. Danço. Ela me leva, ela dança comigo e danço com eles. Todos dançam aqui. Mas estou cansado, quero dormir, quero esquecer.
Goladas de vinho.
Dorme.
No sonho os deuses oníricos o visitam. Espalham criaturas eólicas fragmentadas, espécie de anjos aos pedaços, pernas e tronco, cabeça e braços, unhas e cabelos montados caoticamente. E muitas bocas e vozes. Mas até dormindo o cheiro e a canção não apartavam. Eram inseparáveis dele. Inerentes?
Havia neve. Nunca estivera em lugar algum com neve, mas sentia sua textura, sua frieza, sua qualidade de floco. E caminhava. Sem rumo, respiração ofegante, parecia que fazia muito tempo que estava vagando, estava fraco, as pernas pesavam. Começava a congelar-se. E isso dava uma sensação boa de leveza, de sair de si, de levitar… os membros inferiores ficavam insensíveis, seu sangue parecia demorar mais para transitar entre as veias. Ao longe avistou alguém. Uma mulher. Ruiva, de um carmim que chamava a si toda a atenção naquele infindável mundo branco. Ela era bastante pálida, e agora estava a uma distância em que era melhor visualizada. Ela vestia uma capa negra e roupas escuras, e não parecia se importar com o frio aterrorizante. Estonteado com sua beleza nem viu que outrem correndo chegava e portava uma arma - um punhal prateado - com o qual, ao abraçar a mulher ruiva e beijá-la, a apunhalou. A neve tingira-se. A seiva vital ia esvaindo e ela mudara sua feição. Mais punhaladas. Ele tentou impedir, mas não conseguia se mexer, nem falar. A ruiva o olhava fixamente. Mas o homem que a sacrificava, nem percebia sua presença. O rosto pálido tornou-se impossivelmente mais branco, os cabelos tingiram-se e ficaram ainda mais vermelhos, os olhos também.
Não entendendo o que acontecia a sua frente e nem consigo mesmo, olhou para o horizonte procurando uma saída, alguém. O homem do punhal desaparecera. Não havia mais nada ali. Ao lançar os olhos novamente para a mulher, notou um papel em sua mão, e com um esforço homérico, deu alguns passos para pegá-lo. Deveria ser algo imprescindível, pois ela ainda o segurava com bastante força. Ele retirou cuidadosamente e leu, o que talvez não quisesse ter lido: -É culpa sua!
Nisto uma profusão de sentimentos tomou conta de si. Ficou torpe, tamanha a força daquelas palavras. Enxergava com dificuldade. Tremia mais que antes. Fraquejou. Perdeu os sentidos. Caiu.
O pesadelo da vida imaginária o trouxe de volta ao pesadelo da vida real.
Lá dentro a escuridão. Lá dentro de si, dentro da casa, dentro de seu mundo. Trevas. Não sentia nada. Apenas fome. Dirigiu-se a geladeira, procurou algo. Mas tanto tempo fez com que os alimentos estragassem. Fechou a porta do refrigerador. Pegou um pedaço qualquer de carne. Cortou em pedaços menores. Salgou. Pôs na panela de qualquer jeito, não sabia fazer comida mesmo.
Comi os pedaços com gosto. Salivei. Não deixei muito tempo no fogo para comer filés sangrentos. O sabor era diferente mesmo como havia lido. Mas divinamente saboroso. Acompanhara sua refeição com outra taça de vinho. O paladar voltou, ainda que fraco.
Mais tarde, vômito.
Tinha desligado todos os aparelhos telefônicos. Puxado os fios do computador. Jogado na parede rádios. Restava apenas a televisão que ligava e desligava como bem entendia
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