Uma outra, como tantas.

 art by ~HerHazelEyes


Chegara mais cedo aquela noite. Despia-se. Brincos, pulseiras, colares, saltos, fivela, meia 7/8, liga - a fantasia de todo dia indo ao chão. Era um pouco dela que caía ali.

Não sabia mais o que era ela. Toda a roupa, os perfumes, a pompa, brilhos e paetês, ou aquilo que agora ela via no espelho: uma mulher, cansada, sem muitos sonhos, sem o cheiro do perfume, sem adereço algum, uma outra como tantas.

No banheiro, lavava-se, esfregava tentando tirar os odores que tomaram o lugar das fragrâncias doces: o suor impregnado, as palavras sujas que ouvira, os toques, as mãos que ainda lhe violentavam, os membros que lhe haviam tocado, esfregava, esfregava, esfregava. A pele tão branca, avermelhava-se pela força do movimento que era empregado. Queria limpar-se de toda aquela podridão, da sua vida, da outra que em si habitava. A água lavava parte das dores, desciam pelas gotas, lágrimas, despida totalmente do passado remoto, estava agora mais leve, menos tesa. Poderia dormir, e, quem sabe sonhar com o dia em que tudo iria acabar.

Não, não sonhara, passou horas pensando nas cenas. Não só nas que havia vivenciado há pouco, mas nas que queria atuar. Queria ser atriz. Ser boa de verdade, não mais o fingimento de gemidos, as caras e bocas que fazia, mas queria ser outras, outros, mudar de mundo… ser a Beatriz! Depois de lutar com tantos pensamentos, adormecera.

E como sempre, o relógio toca. Novamente, levanta-se e faz café. Mais uma vez, outro dia começa. Já são três horas da tarde. E nem é mais tão dia assim. A rotina inicia e vai engrenando lentamente até o “rush” em poucas horas.

Passar na quitanda, comprar mistura, pão e desinfetante. Voltar pra casa, limpar o banheiro, pegar as roupas do varal, ler os classificados, comer… quem sabe sobra tempo para a novela. Na mente cantarolava o de costume “Olha, será que ela é moça, será que ela é…” porém o tic-tac quebrava melodias e lhe mostrava que o tempo urge.

Quatro voltas completas do relógio, o banho já tomado. O creme hidrante ia subindo dos pés, para as pernas, virilha, barriga, nádegas, costas, seios, braços, pescoço. Pro rosto, outro creme. Calcinha vinho rendada, corset combinando, cinta-liga, meia 7/8 arrastão, também no mesmo tom. Olha para o espelho, sobe no salto, sente-se poderosa, não é linda, mas dentro de tal embrulho, chama e muito a atenção. Um gole de vinho. Sobre o hidratante facial, a base. Sobre ela, pó, corretivo, sombra, lápis, rímel, blush, batom, vinho, mais batom. Máscara feita, olha-se novamente no espelho e não se vê mais, no reflexo uma ninfa, uma deusa-guerreira, um anjo negro que estarreceria muitos naquela noite. Metamorfose.

Por fim, a veste cabal. Um delgado vestido de cetim preto, decotado, pouco acima dos joelhos, esvoaçante, provocante. Perfuma-se. Atrairá para si, como as flores, os mais variados tipos de insetos. Essa era a intenção. Último gole de vinho.

Toda mimesis passou do tempo. Corre agora. Táxi! Ruas, esquinas, avenidas, trânsito, buzina, sinais, pessoas, respiração mais forte, batimentos acelerados, velocidade, luzes, música, lugares familiares. Pára. Respira fundo, olha para a casa que já começa a encher, e entra pelos fundos sorrateiramente. Pausa.

Uma vez lá dentro, ouve reclamações sobre o atraso e desculpa-se falando do trânsito.
Nos camarins mais pó. Senta-se. Bebe. Conversa com outras. Quando a sós, checa a bolsa: batom, rímel, camisinhas, dinheiro, ainda que pouco.
É chegada sua hora. Vira uma dose de uísque barato para soltar-se mais. Mexe nos cabelos, ajeita o vestido, faz pose. - É você!- uma voz sinaliza sua entrada.

As luzes poucas, coloridas, esparsas. Uma névoa recobria o lugar, gelo seco demais, mas não era hora para reclamar. Música libidinosa entrando pelo corpo, fervilhando cada célula. Entra em cena a mulher mais poderosa do mundo. Começa a dança da sílfide ardente e todos os olhares voltam-se a ela. Esse saber a faz sentir-se bem, cobiçada e excita-se. O mover do corpo melhora vertiginosamente diante da descarga estimulante que o sangue recebera. A platéia pulsa a cada giro, a cada simples passo da dança carnal que ali se faz. É quase um ensaio de coito. Uma performance sexual estilizada. Pasmos estão os que a vêem. Loucos de desejo pela musa da noite. Sabem todos que quanto maior o lance, mais chances terão de saciar a vontade do fruto que agora saia de cena.

Alea jacta est. Combinados todos feitos. A peça mulher é vendida ao seu consumidor. Nesta hora é que a circunstância diminui o brilho e glamour de instantes atrás, mas nem por isso, desiste da missão. O prazer e o “show” devem continuar.

Como num ritual sagrado, a sacerdotisa da libido sentiendi faz a iniciação de seu neófito retirando cada peça de sua roupa deliciosamente, mostrando toda a volúpia que a faz ser considerada a melhor. O iniciado assiste tudo com muita atenção e ao pedido da dama, despe-se. O ambiente é de penumbra, uma música ao fundo dá continuidade à canção que ritmou a dançarina, prolongando no antro o espetáculo de outrora.

Ele levanta-se, não se agüentando mais, indo ao encontro do corpo que o instiga. E com um canivete que trouxera, corta as vestes íntimas restantes dela. Ela se assusta. Ele a acaricia com a navalha e a acalma. Brincadeira perigosa e sensual. Sobe e desce pelo corpo, vão baixando e recostam na cama. Ele deita de bruços.

Sua “compra” pergunta-lhe sobre fantasias. Ele titubeia ao responder, ela entende - os anos de experiência que a ensinaram muito, lhe informam como proceder. Ela pega o preservativo na bolsa. Procura um meio que lhe ajude a atender ao pedido. Encontra. Derrama um gel sobre si e com o corpo esfrega o contra o dorso do parceiro. O prazer intensifica-se. Ele agora com determinação pede. A protuberância anatômica adentra a cavidade. A dor e o prazer se fazem sonoros. Respiração ofegante. Taquicardia. O vai e vem acentua-se. Gemidos. A cama suja-se com o líquido esbranquiçado que jorra dele. Ela ainda em cima, no dorso, movimentando-se. Mais um pouco. E de seu membro vaza o gozo leitoso. Resfôlego.

Um pouco menos torpe agora, saciado, cônscio do que fizera, empurra o ser que tanto lhe deleitara e começa a proferir vocábulos de baixo calão vorazmente. Seu superego voltara com todo vigor. O erro, pensou, deveria ser silenciado. Entre golpes e agressões de todas as formas, a cabeça da mulher choca-se contra a parede. Sangue. O canivete termina o começado. Como um animal que destroça uma presa, estocava a lâmina no que já era cadáver. Sentia-se resguardado agora, ainda que a catexia fosse inerente.

Como todos sabem que uma boa quantidade de dinheiro esconde qualquer acidente, não aconteceu diferente neste caso.

Agora ela não precisaria mais sonhar pensando em como tudo iria acabar. Naquela noite não chegara mais cedo. Naquela noite era uma, como tantas.


Fernanda Silvestre.

Comentários

Anônimo disse…
"A protuberância anatômica adentra a cavidade."

O que você anda lendo, my dear? A Casa dos Budas Ditosos? :P

bão bão ;)
Moacir Novaes disse…
"Por fim, a veste cabal. Um delgado vestido de cetim preto, decotado, pouco acima dos joelhos, esvoaçante, provocante. Perfuma-se. Atrairá para si, como as flores, os mais variados tipos de insetos. Essa era a intenção. Último gole de vinho."

Achei essa parte absolutamente brilhante.
Zé Raimundo disse…
Achei absurdamente brilhante, do início ao fim. A sutileza da descrição é hipnótica, os instantes vão surgindo espontaneamente um dentro do outro e não um após o outro. No final, o erotismo e a violência surgem naturalmente e não como inevitável modo de conclusão. Gostei muito mesmo! Adoro textos poéticos e vigorosos, que vão me conduzindo a lugares e situações geralmente evitados. Belíssima escrita! Nos brinde mais vezes com suas palavras.
Filipe Ribeiro disse…
Tipo de coisa foda de se descrever, vai dizer o que?! Churros, membro, pastel?.. É foda!

Adorei as partes que todo mundo adorou, mais o lance da navalha...

Sobre o texto, ele é lindo!