Monalisa


 art by ~petermichael60


"Ela estava sorrindo."

O homem sentado diante de mim repetiu isso umas cinco ou seis vezes nesses últimos minutos. A voz dele estava embargada, havia mudado bastante do começo até esse ponto, alterando-se entre calma, ansiosa, nervosa, conformada até o tom perplexo atual.

"Ela estava sorrindo..."
Ele disse mais algumas vezes antes de ficar parado olhando para uma das paredes da minha sala, mais precisamente para algum ponto invisível ao meu olhar, algo intangível entre os livros de direito gastos e a triste planta verde e desbotada dentro de um grande vaso no chão.
Ela, aquela que sorria, nesse caso tinha por nome Maria Rita Pimenta, trinta e um anos, natural do Rio de Janeiro, uma mulher muito atraente.
Talvez eu deva ser mais preciso quanto a isso... Porque ela não era por definição perfeita.
Sua beleza estava ligada diretamente à postura que a senhora Rita tinha diante da vida, ao apreço que ela sempre pareceu nutrir por si e por sentir-se desejada.
Ela gostava disso... Era seu vício particular.
O prazer quase físico que ela deveria ter quando percebia os olhos de outros homens voltados para sua passagem e presença. Confiança era a palavra chave.

Algo tão forte que tornava Rita imensamente atraente para qualquer um que permanecesse próximo dela por mais do que quinze segundos, ao menos, foram essas as palavras do homem sentado diante de mim.
Imagino que foi justamente essa intensa atração que manteve esse senhor casado com ela por quase dez anos, mesmo sabendo que era traído, que jamais a teria totalmente e que nunca ela estaria sob controle, mesmo assim, ele mantinha-se ao lado de sua esposa.
Segundo suas palavras:
"Amava-a mais do que odiava e isso era o bastante."

Ele precisava dela, da sua presença. Aceitava aquela situação por medo de perder o que nunca foi realmente dele. Amor e ódio são incrivelmente parecidos se você parar para pensar. 
Boa parte dos assassinatos não pode ser definida como crimes de ódio, ao contrário, eles são criados pelo amor. O amor em demasia, a necessidade que nubla os pensamentos e remove qualquer freio moral.
O que começa como afeição, transforma-se em desejo, torna-se posse e então suspeita. Ciúme, fúria, a cumplicidade que passa a ser desconfiança, a desconfiança que se torna ódio. O amor que conduz a morte.
As vinte e duas horas e quarenta minutos da última quinta, como o próprio ex-marido relatou, ele entrou no apartamento da senhora Rita.
O prédio antigo não tinha câmeras, ele sabia que não seria visto. Nem mesmo pelo porteiro, que naquele período mantinha um intervalo regular para jantar, precisamente entre vinte duas e trinta e vinte e três e trinta da noite, durante esses minutos ele ficava em uma sala pequena, fechada nos fundos da garagem.
Um lugar calmo onde era possível devorar o jantar magro e assistir um pouco de televisão.

O ex-marido afirmou que foi o amor que o levou a tentar surpreende-la, que o fez entrar no prédio sem ser visto.
Ele planejava encontrá-la e pedir para reatar o romance, quem sabe até o casamento.
Não foi difícil entrar tendo todas as chaves, sabendo o que acontecia dentro do prédio, quais eram as rotinas estabelecidas.
O único imprevisto nos planos dele foi a ausência de Rita no apartamento.
Ela aparentemente tinha saído e essa ausência não pareceu tão importante quanto dedicar-se a imaginar o que ela estava fazendo. Posso somente supor como a mente dele trabalhou nesses minutos, consumindo-se, criando hipóteses sobre onde, o que e principalmente com quem sua ex-esposa estava.

As vinte e três horas ele ouviu a voz dela através da janela da sacada, Rita estava rindo alto. Vibrante. Através das cortinas entreabertas, ele pode ver o objeto de seu amor descer de um carro prata, envolto por um vestido negro absolutamente insinuante.
"Rindo alto. Ela estava rindo". Na verdade, parecia feliz, muito mais do que demonstrou poder ser quando vivia ao lado dele durante todos aqueles anos.
Foi nesse momento que ocorreu a mudança. A fúria que cega que altera a percepção dos fatos. "Como ela podia rir daquele jeito?"
Ele esperou a chegada dela, podia ouvir o som dos saltos altos contra o piso frio. Apenas esperou com paciência, aguardou sua passagem pela porta do apartamento e o fechar do trinco, somente então, deixou as sombras da sala e caminhou na direção de Rita.
Antes que ela pudesse ligar as luzes atingiu seu rosto com um sonoro tapa que a lançou no chão.
Não houve outros sons, antes que ela entendesse o que tinha ocorrido ou pudesse gritar, ele colocou-se sobre sua ex-esposa e a estrangulou.
É necessário ímpeto para tirar a vida de uma pessoa assim. Diferente de atirar em alguém, o que ele fez, consumiu tempo. Foi preciso uma dose maciça de convicção, para não hesitar ao sentir as mãos dela arranhando os braços e rosto dele... Para não parar enquanto via a expressão dos olhos dela e sentia a pulsação diminuindo na garganta.

Pessoas são assim. Normalmente matam por poder ou por amor.

Por volta das vinte e três horas ocorreu a morte. Nos confusos minutos que se seguiram, quando compreendeu o que tinha feito, o marido ainda tentou simular um roubo, abrindo o cofre, removendo dele jóias valiosas e dinheiro, para só então; deixar a cena do crime apressado.
Sem ser visto por absolutamente ninguém.

Seria bastante complicado encontrar provas que o incriminassem definitivamente se ele não tivesse, espontaneamente, vindo até a delegacia e confessado o crime.
Sem seu depoimento, o caso acabaria arquivado como um latrocínio e em pouco tempo esquecido.

Antes de deixar a sala e preparar a papelada, fiz uma última pergunta para o que tinha sobrado daquele homem, para aqueles fragmentos sentados diante de mim.
Perguntei por qual razão confessou tudo. Ele tinha imensas chances de escapar e nunca ser indiciado.
O homem levantou os olhos na minha direção e disse que, ao pegar o dinheiro e jóias do cofre, não notou tinha subtraído algo além daqueles bens. Ele só percebeu depois o que havia carregado consigo... Quando já era tarde demais.

Com uma calma lívida e os olhos vermelhos, ele me mostrou o que era esse objeto roubado do cofre, tirou do bolso do terno cinza uma foto retangular dobrada. Na imagem, vítima e assassino estavam juntos e ela estava sorrindo.

"Ela me amava". Ele disse duas vezes estendendo a foto para minhas mãos. 

"Ela guardava isso no cofre junto com os outros objetos de valor. Vê como ela está sorrindo? Ela realmente me amava.
Consegue ver como ela está sorrindo comigo?
Ela estava sorrindo..."




...

Comentários

Zé Raimundo disse…
Maravilha!!!
Lembrei-me do olhar da professora Lúcia ao ler seu conto. Ela ficou muito feliz pelo que você havia escrito. Com toda razão, sr. Moa.