ELA QUIS ESQUECER

A menina nasceu com um quê estranho. Como aquele tipo de personagem de novela nem feia o suficiente para ser vingativa nem bela o bastante para ser acordada com o beijo úmido de um príncipe encantado. Deve ser por isso que decidiu ser estudiosa. Passava horas e horas lendo livros, revistas, jornais, bulas, panfletos, anotações alheias e até o quadro de avisos do prédio onde morava. Passeava pelas curvas dos esses para logo desembocar nos fatais erres. Sentia-se feliz por entre toda a parafernália papelística que a protegia dos terríveis monstros de carne e osso – ou só de pensamento mesmo. Deixou de usar o eu-lírico há tempos; achava o narrador mais interessante, mais culto, mais cultural, mais politicamente correto. Assim, evitava os erros de sintaxe e concordância.



Ela é insuportavelmente nostálgica, para si mesma e para os outros. Para uma menina tão nova, inícios de frase como “Naquele tempo” e “Quando eu era criança” soa um tanto ridículo – e faz-se pensar como ela iniciará suas frases quando for uma octogenária. Tão egoísta, não permite nem que seu avô saboreie o tão merecido descanso pós-morte – atormenta-o com pensamentos distraídos como: “Se você estivesse aqui...”. Quando seu avô era vivo, gostava de escutá-lo contar histórias de guerra. Mas para que saber de pessoas mortas, choradas e enterradas? Porque toda história é contada pela metade e assim, reinventava os finais tristes e alegres, imaginando preencher o vazio que há na vida de todos.



Andava de um lado para o outro, fumando freneticamente, olhos postos em seu infinito particular. Revirava suas lembranças, seus personagens imaginários, fotografias e talvez conseguisse se lembrar de tantas histórias lidas e vividas. Queria escrever o que seus dedos levemente indicavam, mas, definitivamente, alguma espécie de agouro, macumba, praga ou mesmo ineficiência a impedia de livrar-se das palavras outrora colhidas – tão inocente e ferozmente.



Neste dia, porém, decidiu acabar com tudo isto drasticamente. Já é tempo de viver sua própria história, com o mínimo de interferência exterior possível. Pegou lápis e papel, enumerou os livros que lembrava ter lido e queimou a lista. Criou um manual de vida, contendo os itens proibidos – como pensar no que aconteceu a partir da semana passada, não escutar certas músicas que lembram certas pessoas, rasgou fotografias, provas, agendas, diários e cartas. O único parágrafo dedicado ao que era lícito foi elaborado como uma oração:



“Livro-me de tudo que foi um estorvo a minha sanidade mental para finalmente escrever minha história com meu lápis, com meu papel, com minhas próprias palavras e de próprio punho.”



Mas, na ânsia de tanto esquecer, esqueceu-se que não era um livro escrito a lápis que pode ser apagado. Esqueceu-se que entre o ódio cego que estava sentindo, existiam os pequenos amores que espalhou. Enfim, nem tudo pode ou merece ser esquecido – acaso tivesse ido adiante com esta idéia, teria ela esquecido sua língua e assim reinventado uma maneira de expressar-se para si mesma?

Comentários

Moacir Novaes disse…
Seus textos tem me surpreendido.
Já havia esquecido como era essa sensação.
Um dia antes do meu dia rs...