MORREU DE VELHICE

Abriu os olhos. Fechou os olhos para tossir. Sentiu o pigarro descer pela garganta. Os anos de sedentarismo e fumo fizeram do pulmão uma massa negra, inútil, frágil. Há duas semanas, estivera internada por conta de uma grave pneumonia que adquiriu respirando os ares úmidos da praia de Santos. Não se importava.

A fresta da janela quebrada deixava a brisa gelada entrar no quarto. Mas não o suficiente para arejar toda aquela velhice, aquela poeira que os anos acumularam, aquelas lembranças a qual Isaura se apegou, amordaçou e engessou. Vestiu-se, meticulosamente, como toda velha que perdeu a beleza natural da juventude. Arrumou os cabelos ralos com uma presilha. Beijou a fotografia de um amor não esquecido.

Caminhou pela rua, pensativa, alheia ao vaivém dessa modernidade. Chegaria ao escritório já cansada. Mas cumpriria o ponto como é de rotina. Trabalhava naquela empresa de construção havia muito tempo, mas todo dia a recepcionista perguntava se ela estava usando o crachá de identificação – com uma foto dos tempos da mocidade. Os cabelos encaracolados caíram para dar lugar ao turbante azul turquesa. Aquele câncer, o pior de todos, demorou a se dar por vencido, e a luta foi desleal. Dizem as más línguas que o câncer não foi embora, fez pacto com Dona Isaura e decidiram habitar o mesmo corpo, convenientemente.

À noite, quando o frio vinha valente, Isaura gemia de dor – a fraqueza dos ossos desgastados, as doenças hereditárias, a infecção lancinante vingavam-se. Não tomou vacinas, não cumpriu os exames, não mediu a pressão, não fez dieta. Assim, os gemidos eram abafados, envergonhados, reprimidos. Em seu íntimo, acreditava que merecia essa punição vinda dos céus, dos infernos, da fresta da janela quebrada.

No dia seguinte, abriu os olhos e não mais fechou. Morreu assim, esbugalhada. Todos os cidadãos da vila foram velar o corpo de Dona Isaura. Por piedade, fizeram os cochichos e as fofocas. Derramaram algumas lágrimas e mandaram lapidar o epitáfio: Aqui jaz Dona Isaura. Morreu de velhice, aos 21 anos de idade.

Comentários

Anônimo disse…
Paguei pau Ju

O.O


Perfeito!
Moacir Novaes disse…
Admiravel. Excelente desfecho.
Tem uma beleza brutal.