P.I.F

Olá.

Trabalhar com arte parece ser uma profissão excitante não é?
As fotos nas revistas, as entrevistas, o glamour, o escândalo... especialmente aquele onde você aparecerá bêbado no fim da madrugada em uma boate badalada, abraçado com dois anões suecos, uma ruiva e um travesti.
A pior parte é que no dia seguinte, todas essas pessoas ainda estarão na sua grande e luxuosa cama, o que inevitavelmente fará você se perguntar:
"O que diabos eu fiz na noite passada??"

Porém antes de todas essas aventuras, antes de sua fama e ruína é necessário começar de baixo, aos poucos. E embora ser operador de telemortalkombaketing seja um dos pontos iniciais da sua escada para o sucesso... o verdadeiro subterrâneo, o local mais baixo possível está em ser um "P.F.I" ou "Palhaço de Festa Infantil".

Nada se compara a isto... nem as pragas do Egito, nem tsunamis ou terremotos, absolutamente nada se equipara ou terror de ser Palhaço de Festa Infantil.
É sério... Não é nada engraçado. Eu sei bem disso.
Foi um amigo meu que me chamou para trabalhar no ramo. Inicialmente parecia fácil sabe? Eu apenas teria que ir em uma das festas que ele tinha agendado, fazer algumas palhaçadas, brincar com a criançada e pegar o cheque. Eu lembro que ainda pensei comigo...
"Hummm bolo de grátis."

Já dá pra compreender, não é? Só essa frase já deve ser o suficiente para perceber que eu selei minha passagem pro inferno na terra quando aceitei me tornar palhaço.
A festa começaria as duas da tarde.
Exatamente as 13:45 eu estava pronto, devidamente trajado e maquiado sob a tenda improvisada no meio do jardim. A casa da festa era legal... e as crianças, entorno de vinte ou trinta pareciam tão adoráveis.
Eram como uma coleção de figurinhas da hello kity... todas lindinhas, fofinhas e tão tranqüilas. Eu nunca tinha notado isso sabe?... Mas tubarões brancos assassinos e aquelas criancinhas tem o mesmo jeitinho tranqüilo de olhar. Ambos parecem calmos até tentarem arrancar sua mão.

As 14:00 horas, um dos adultos presentes começou a anunciar o palhaço... Foi escutando os múltiplos gritos histéricos que comecei a notar algo sombrio.
A mesa de doces já tinha sido devorada... crianças mais açúcar é igual a holocausto nuclear. Hiper atividade e palhaços são uma combinação instável.
Eu tenho quase certeza que alguém da cozinha adicionou anfetamina naqueles brigadeiros, balas e refrigerantes, porque com certeza não usaram açúcar de confeiteiro nos churros... não! Aquilo tinha que ser cocaína... é a única explicação possível.

14:02 eu saio da tenda.
14:02:10 segundos as crianças encontram sua vítima.
14:02:30 segundos... elas começam a correr na minha direção como um bando de hienas famintas, gritando "Olha o palhaço!"
14:05. Depois da ser arrastado pela avalanche eu acordei alguns minutos mais tarde com um dos adultos jogando água na minha cara e dizendo que eu deveria ir brincar com as crianças e justificar o meu salário.

Tecnicamente a função de um palhaço em uma festa é permitir que os adultos se afastem e lembrem o que é ter uma vida social, enquanto ele, luta pela sobrevivência no quintal.
Sério, eu tentei aquelas brincadeiras pedagógicas e politicamente corretas... falando sobre hipopótamos fofinhos, girafas amigas e ursinhos pandas.
"Agora o jogo é do seja gentil com seu coleguinha, juntos contra a destruição da Amazônia..." Eu disse.

Mas crianças são influenciáveis, especialmente pelo molequinho ruivo no meio delas que começou a gritar "eeee... destruição!... destruição!... destruição!"
Levou uns dez segundos até as trinta crianças estarem gritando com ele "destruição, destruição." Eu sinceramente nem sabia que balas de goma, bolas de futebol e cadeiras poderiam ser transformadas em armas mortais. Eu até tentava dizer gentilmente:

"Não... não pode bater no tio palhaço com o cano de ferro do jardim... é feio."

Minha memória é um pouco confusa a partir desse ponto, possivelmente por causa dos golpes de bicho de pelúcia na minha cabeça. Eu lembro de alguns pontos importantes, os mesmos que tenho discutido com meu psiquiatra desde então.
Lembro de um grupo de crianças gritando "Joga o palhaço na piscina!! Joga! Joga! eEeeeeeee!!"

Eu não fiquei muito preocupado com isso... o que me incomodou foi a frase seguinte "Não!! Na piscina não, coloca fogo nele! EEEeeeee!.. .Põe fogo no palhaço! Fogo! Fogo!"
Ouvindo isso eu tive um insight, um momento muito especial comigo onde pensei em duas coisas:

A primeira... "Hummm agora entendo porque na hora de comprar a roupa de palhaço a mocinha da loja perguntou se eu queria tecido sintético ou anti chamas"

A segunda... "Eu vou morrer. Fudeu."

Eles nem precisaram me jogar na piscina, eu mesmo me joguei. Os pais acharam uma graça né? "Nossa Nelson, um palhaço que também faz truques com fogo, que prático."

O suplício deveria ter durado somente uma hora, mas os outros artistas não chegavam e o dono da casa disse que haveria um extra se eu ficasse enrolando mais tempo. Foi diante da imagem das contas vencendo em casa, do aluguel, telefone e boteco que cometi a segunda grande imbecilidade ao dizer..."Claro... eu fico."

No lugar do "claro eu fico" deveria ter saído um "nem fodendo". Simples assim, direto, pra mostrar a impossibilidade de voltar aquela zona de guerra. Mas o gênio aqui voltou.
Sabe o que é ter um moleque impaciente do seu lado perguntando 32 vezes por minuto:

"Os macacos vão vir? Hein? Os macacos vão vir? Quando os macacos vão vir? A minha mãe disse que ia ter macacos na festa."

"Daqui a pouco fofinho. Logo, logo os macacos vão vir."

"Logo quando? Eu quero ver os macacos. Eles vão vir não vão?

"Vão sim."

"E quando os macacos vão vir? Eu gosto muito dos macacos. Tem macacos no zoológico também. Eles vão vir? Os macacos?"

"Sim vão! Vão! E vão trazer com eles o Godzilla e o King Kong para pisar na sua casa e comer a cabeça da sua família!!"

Bem... eu acho que são por coisas assim que algumas crianças tem medo de palhaço. Embora, eu fique com a sincera impressão que na verdade, são os palhaços que tem medo das crianças.