Ecos


Art by Gary Larson



- Que calor terrível bem no meio do inverno, acredita nisso? A frase do meu amigo no abafado vagão do trem não era nova; já havia escutado a afirmação em vozes diferentes tantas vezes que nem a percebia. Alego em minha defesa que não sou a exceção, na verdade represento uma regra, a humanidade como espécie cultiva o hábito de ignorar certas mensagens.

Isso não me isenta de culpa, mas faz pensar, por que nos adaptamos até o ponto de não sentir ou ver?

- Está quente não é? Ele repetiu batendo em meu ombro.

- É mesmo. Respondi sem estender o assunto. Ao menos agora poderia ler em paz o folheto exprimido entre as minhas mãos e a multidão acumulada naquele espaço, era um texto sobre preservação ambiental e espécies ameaçadas.

- O que é isso? Disse meu amigo esticando o pescoço para ver o que eu lia.

- Um folheto.

- Sei que é um folheto, perguntei sobre o que?

- Conservação ambiental. Espécies ameaçadas de...

- Não acredito que está lendo essa bobagem! Acha mesmo que bichos como mico leão, peixe-boi, sapo-boi, arraia-boi e não sei mais o que boi, lá no meio do mato interferem em nossa vida? Como você aguenta o papinho alternativo de Amazônia pra lá e pra cá...
   Vamos parar na próxima estação para tomar uma cerveja?

- Bem...Vamos.

- Agora sim. Está mesmo um calor terrível.

Quinze minutos depois estávamos em um bar, lugar simples do tipo que serve bebida em copo baixo e com aperitivos que dão medo ou no mínimo inspiraram respeito porque são mais velhos que as pirâmides. Pedaços de torresmo, ovos cozidos em cores sintéticas azuladas e empadinhas em fileiras como soldados no balcão metálico. Imagino quantas outras conversas aqueles ovos testemunharam.

- Saúde! Ao mico-leão!

- Como é?

- É sério. Lembra dele? O "mico leão alguma coisa boi" que você disse não interferir em nossa vida.

- Não entendi.

- Sei que não. Permita-me explicar.
Enquanto estamos aqui no bar por causa desse calor terrível; lá, em uma das partes remanescentes da Mata Atlântica que já cobriu quase todo litoral do Brasil e que agora ocupa esparsos dez por centro do território original, o senhor Custódio, caçador ilegal, está prestes a abater nosso caro mico leão.
Para ele é algo normal, é isso que um caçador faz, assim como o pai dele e antes deste seu avô; diferente mesmo era o tipo da caça.
O bicho não era dourado nem preto, não era como os outros. Tinha um tom puxado para o branco, a cabeça e as costas eram vermelhas. Custódio não poderia mesmo reconhecer o animal, afinal, nenhum outro humano viu aquela espécie antes e o colorido mico era um dos últimos exemplares vivos do seu tipo.
Enquanto carregava a espingarda ele pensou se o rapaz de óculos com fala macia que comprava sua caça poderia pagar um pouco mais no mico.

Custódio nunca entendeu muito bem qual serventia os bichos mortos tinham, chegou a perguntar o que aquele homem fazia com a caça depois de guardá-la nos sacos plásticos e no isopor, o rapaz desconversou e nunca mais se falou disso.
Até aqui, você pode até achar que a gente, o seu Custódio, o rapaz e o mico vivemos em mundos diferentes, mas isso não é verdade.

O mico leão é uma das centenas de espécies não catalogadas que todos os anos são extintas; como seus outros parentes, ele atua dispersando sementes na Mata.

A existência desses animais manteve o equilíbrio natural das florestas, sem eles a reprodução das árvores é ameaçada, além disso, quando não existir mais micos na floresta a vida se tornará bem complicada para os outros animais. Você já deve ter visto uma camiseta estampada com "Salve o Mico", mas nunca com "Salve a Centopeia" e mesmo que besouros e jabutis tenham igual importância, torna-se politicamente complicado deter a exploração comercial de uma região baseado nos interesses das rãs ou formigas.

A mata sem o mico será vista como terra a ser comercializada.
Legal e ilegalmente a ilha verde será absorvida por pasto, casas e prédios até sumir.
Esse processo se repete em outros lugares próximos daquela região, assim, o desequilíbrio iniciado com um macaquinho esquisito em uma floresta se espalha em um efeito dominó por todo o estado, de estado em estado, até todo o país.

Cada habitat que termina, empurra outro para ser usado, novos e mais fantásticos animais serão caçados antes sequer de receberem um nome científico. Esses refúgios naturais, as florestas, os micos... Bem eles existiam por alguma razão, a despeito de nossos critérios, eles não tinham um papel apenas decorativo no mundo. Eles farão falta.
A natureza, embora seja vista por nosso sistema comercial como um problema para o progresso, é, na verdade, a inventora do conceito de globalização.

As bobagens que são feitas em uma parte do planeta acabam afetando todo o restante do mundo de algum modo.
Lugares frios se tornarão quentes, onde não existia tornados você irá tê-los, onde havia um rio ou uma vereda você tem um deserto. Cidades como a nossa passam a sofrer com estiagem, calor, inundações e escassez.
Em última instância...É exatamente por causa da morte do mico lá no meio do mato que hoje temos "um calor terrível bem no meio do inverno".

Se serve de algo, dessa vez e especialmente hoje, o Custódio errou o tiro e o mico escapou entre as árvores adiando um pouco nosso caos absoluto.

Se fosse você, eu não culparia a arma, nem o caçador, nem o comprador; porque nossas mãos também estavam perto do gatilho, elas sempre estão disparando ou detendo a bala.
É de admirar que seja tão complicado entender que quando a arma é apontada para a testa do mico, na real, é a nossa cabeça ali na mira.
A sua, a minha, a do Custódio, a do rapaz de fala macia e a cabeça de todas as pessoas que existem.

Acho que isso explica o que a gente tem a ver com o mico.
Saúde?

- É... Saúde.

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