Cena 10

.

A mãe de Fátima sentada com uma travessa. Ela assiste TV enquanto escolhe feijão.

A campainha toca. Ela põe a travessa de lado e vai até a porta.

Mãe – Pois não?!

Arthur – Boa tarde... Eu vim do Rio de Janeiro, procuro pela sua filha, Fátima Marques.

Mãe – Ela tá viajando.

E começa a fechar a porta.

Arthur – Eu vim em nome da Letícia, amiga dela.

A senhora pára, desconcertada. Abre a porta.

Mãe – Entra, não repara a bagunça.

Arthur – Brigado.

Mãe (zanzando) Tô arrumando as coisas aqui.

Arthur – Não tem problema.

Mãe – Quer ver TV?

Arthur – Não, obrigado. Podemos sentar?

Mãe – Deixa eu pôr uma musica então. Vocês adoram música.

Vai até o rádio, e abre desajeitadamente o cd player, procurando os botões.

Mãe – “Alice in Chains” não, muito triste.

Tira um molho de chaves do bolso e abre o cadeado da cômoda.

Arthur – Você guarda os cds com cadeado?

Mãe – Esses aqui são... Escondi dela pra quando ela tivesse mais preparada.

Arthur – Tem uns livros também.

Mãe – Só quem nunca leu de verdade acha um absurdo proibirem livros.

Arthur observa a operação.

Mãe – A Fátima gosta de ouvir música e se identificar com coisas que nunca aconteceram com ela - ri - E de guardar recordações nojentas do que ela fazia com os namorados...

Pega a pilha de CDs e deixa a portinhola aberta.

Mãe - Tem um monte do Legião Urbana, prefiro uma coisa mais agitada.

Arthur (tomando a pilha de CDs de suas mãos) – A música mais agitada da Legião é sobre um menino que morre num racha.

Mãe (solta a pilha de CDs e se afasta) Você acha que eu sou louca, né?

Arthur – Não, claro que não.

Mãe (aponta para os CDs na mão de Arthur) Você faria isso, tomaria os CDs, se não julgasse que eu sou louca?

Arthur – Desculpa.

Mãe – Eu percebo essas coisas. A calma na sua voz.

Arthur – Querida, eu não acho que a senhora seja louca... Eu vim aqui por causa da Fátima, a senhora sabe onde ela está?

Mãe – Não... Eu achei que você tivesse vindo me dizer que ela está morta.

Arthur – Morta?! Porque ela estaria morta?

Mãe – Eu tive um sonho com aquele cara que pega as meninas na estrada.

Arthur – O Tubarão da Dutra?

Mãe – Tem muita gente boa perdida por aí... Mas também tem muita gente ruim... Gente que se você não estiver perdida, nunca vai encontrar.

Arthur (tirando o gravador e pondo sobre a mesa) – Se importa que eu grave essa conversa? Eu trabalho com antiguidades, recupero peças para colecionadores, a Letícia/

Mãe – Eu não me importo... Pode fazer o que quiser.

Arthur – Qual foi a ultima vez que a senhora viu a Fátima?

Mãe – Foi aqui, nessa sala, há três anos atrás... Depois eu vi ela uma vez, no centro, faz um ano...Tava mudada... Eu ainda achei que vi ela semana passada, atravessando a rua, igualzinha era antes, mas aí eu acordei e vi que era um sonho.

Chora em silencio, sem cobrir o rosto. Arthur, desconcertado, estende um lenço para ela.

Mãe - Obrigada. Três anos, da última vez que falei com ela... Um ano, no centro.

Arthur – A senhora acha que ela voltou pra cidade?

Mãe – Ela foi e voltou várias vezes! Cada dia com um... Nessas cidades levam anos pra descobrir quando você é uma vagabunda... Porque você toma cuidado... Esse é o tipo da coisa que se esconde... Mas a Fátima não, em pouco tempo todo mundo já falava... Ela era uma menina desastrada. Acho que ela não sabia que era uma vagabunda.

Arthur (suspira, num tom profissional) – É uma história triste, do tipo que a Fátima sonhava pra ela... Mas não é a sua filha que estou procurando.

Mãe – Não?!

Arthur – É uma caixa, uma pequena caixa de madeira - faz o tamanho com as mãos - que pertencia à sua filha.

Mãe – Ah... aquela caixa... E o que tem dentro, dinheiro?!

Arthur – Não sabemos... Mas acreditamos que ela tenha levado a caixa com ela.

Mãe – Não era a caixa que ela levava... Foi a chave... Pendurada, tipo um colar.

Arthur (aproxima-se dela) A senhora sabe onde está a caixa?

Mãe – No quarto dela.

Luzes se apagam.



Cena 11


Se acendem lentamente no quarto, onde logo surge Arthur. Ele entra com infinita cautela, aspirando o ar, reconhecendo cada canto. A cômoda. A caixinha de musica que morre em suas mãos...

Tira o gravador do bolso.

Sério, num tom profundo.

Arthur – “ Foi dito que seu quarto resume o passado das casas em que morou. Mas isso vale pra algumas pessoas... O da menina era como um quarto pra estranhos. Só uma cama e uma mesa. Lâmpada e sapatos. Nenhuma foto recente, livros ou CDs. Na gaveta cheia de calcinhas lavadas, nenhuma eu conhecia. No tampo havia um diário. Na parede só um espelhinho emoldurado. Nada lembrava ela. Estou de posse do diário, que diz só mentiras.”

.

Comentários