Cena 22

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O quarto escuro. Um feixe de luz entra vagarosamente pela porta rangendo até tocar o corpo de Letícia, que acorda com a claridade. Ela esfrega os olhos. Há um homem na porta.

Letícia – Arthur?

Vulto – Onde ele tá?

Letícia – Quem tá aí?

A luz se acende sobre Roberto, parado na entrada. Eles se reconhecem.

Roberto – Eu não sabia que você tava com ele. Desculpa, não posso ficar aqui fora.

E entra, fecha a porta. Letícia desiste de se cobrir e se expõe de camisola.

Letícia – Claro... Você é o sócio dele, né?

Roberto – Sou... Você sabe onde ele tá?

Letícia – Acabei de acordar... Deve estar voltando...

Roberto (andando pelo quarto) – O Arthur veio atrás de alguma coisa de uma namorada dele, não?

Letícia – Isso... Eu também.

Roberto – Certo.

Letícia – Ela é minha amiga.

Roberto – Entendi... Bonito... A gente geralmente deixa que os nossos amigos sumam.

Letícia – Você já deixou algum amigo seu sumir?

Roberto (dando os ombros) – O Arthur é o meu único amigo.

Letícia – A Fátima também era minha única amiga...

Um barulho na janela. Roberto se alarma, assustando Letícia. Eles param por um momento em silêncio.

Letícia - Tem alguém atrás de vocês?

Roberto – Tem, a polícia federal.

Letícia – Eles querem te prender?

Roberto – Não por enquanto. Eles querem primeiro nos interrogar, mas isso é só uma formalidade.

Letícia – Vocês fizeram alguma coisa?

Roberto assente e tira do bolso um isqueiro Zippo, e acende.

Letícia – Um isqueiro? Vocês roubaram?

Roberto – Não.

Letícia – É caro?

Roberto – Muito. (se aproxima para mostrá-lo) – Esse é o isqueiro que tava no bolso do Mariguella quando ele foi assassinado.

Letícia olha para o pequeno isqueiro. Roberto estende a ela.

Roberto – Toma... Segura...

Letícia o toma nas mãos e o vira.

Roberto – Você consegue sentir a historicidade da peça?

Letícia – Não...

Roberto - Nem eu. (toma de volta e guarda no bolso do casaco) É esse o motivo. Nós fizemos duas réplicas e guardamos a original. Envelhecemos quimicamente... Perfeitas. Mas de alguma forma essas réplicas se encontraram. E é por isso que a polícia está atrás da gente.

Letícia – Que loucura! Mas vocês podem ser presos... Por isso?!

Roberto – Nós vamos ser! Nossos clientes são muito grandes, e é uma relíquia muito valiosa ideologicamente...

Letícia – Meu Deus!... Por causa de um isqueiro!

Roberto – Cada dia é uma mentira, e as pessoas anseiam por alguma coisa que seja verdade de fato... Não se brinca com os sonhos das pessoas.

Letícia – Sempre brincaram com os meus.

Roberto – É porque você é pobre!

Letícia (sem estar certa) – É...

Roberto (rindo, para ele mesmo) – O Mariguella ajudaria a gente a fugir...

Letícia (reconsiderando) – Não é só isso! Eu sou passageira.

Roberto – Como assim?

Letícia – Lembra quando você era criança e não agüentava virar a noite acordado pra ver o dia nascer? Sabe a primeira vez que conseguiu?... Foi inesquecível, mas você não lembra.

Ele ri.

Letícia – Eu sou meio assim... O que cê tá fazendo?!

Roberto – Tô tirando uma foto.

Bate o flash e volta a guardar a maquina.

Letícia (ri) – Você vai perder essa foto!

Roberto – Provável!... Mas tô fazendo a minha parte.

Letícia – Você é um doce – (e toma sua mão afetuosamente. Roberto recua por um momento)

Arthur abre a porta.

Letícia se assusta, recobrando-se de algo pensado. Roberto não.



Cena 23


Roberto – E aí Arthur...

Arthur – Roberto?

Roberto – Eles tão aqui cara...

Arthur – Eles quem?

Roberto – A polícia. Eu sumi e agora tão atrás de você.

Arthur – Você sumiu?

Roberto – Tavam na casa da mãe da sua mina... Acabei de vir de lá...

Arthur – Meu deus... Mas eu tava lá agora!

Roberto – Eles chegarem assim que você saiu...

Os três em silêncio.

Letícia (tentando quebrar a tensão) – Eu vou dar uma volta, deixar os meninos à vontade...

E sai.

Arthur (atônito) – Caralho...

Roberto (dando os ombros) – É isso cara. É isso...

Silêncio. Roberto vai até ele e dá um tapinha no ombro pra confortá-lo.

Arthur – Que cretinice, meu deus! A gente se descuidou muito! Mexer com esses caras...

Roberto – A gente sabia, mas esqueceu.

Arthur – Mas dois isqueiros?! Não precisava...

Arthur vai até a cômoda do quarto e pega uma garrafa em miniatura de whisky. Fica com ela nas mãos, sem saber se abre.

Roberto – A Cris tá sendo mó parceira nesse lance... Foi no banco e sacou tudo, o dinheiro da viagem. Vendeu o carro... O carro/

Arthur – Ela tá aceitando qualquer coisa porque vai te deixar.

Roberto – Ela não vai me deixar... Mas se eu for preso sim. Se não, ela só vai sumir aos poucos...

Arthur concorda.

Roberto – Eu me sinto igual àquele cara do livro do Dostoiévski... Lembra, aquele que começa na floresta?

Arthur não lembra.

Roberto – É tipo um daqueles lugares onde todos os seus pecados vem te encontrar.

Arthur pára alarmado e olha para ele com severidade.

Roberto – Tá lá numa floresta escura e se perde. Vem um cara e conta que ele tá sendo julgado... Ele não sabe o que fez, nem quando...

Arthur (aliviado) – Você tá confundindo com O Processo do Kafka.

Roberto – Não...

Arthur (insistindo) – E esse começo na floresta é da Divina Comédia... Você tá misturando as histórias, talvez com Crime e Castigo.

Roberto – Isso!

Arthur – Mas não existe livro do Dostoiévski que começa assim... Mesmo no Crime e Castigo é ele mesmo que se julga. E a floresta, com certeza não é uma floresta russa, é italiana! Você imaginou a floresta errada!

Roberto – Quero ver o que você vai fazer com essa sua cara de arrogante quando você for preso.

Arthur (sereno) – Nós não vamos ser presos.

Roberto – Hoje eles tiveram na casa da mãe daquela sua mina. Já tão correndo com o processo. Vão pedir a nossa prisão preventiva...

Arthur – Eles não podem pedir prisão preventiva, não somos ameaça à sociedade.

Roberto – Eles podem fazer o que eles quiserem! É isso que você ainda não entendeu! Você acha que pode escapar das coisas ignorando elas! Semana que vem já vai estar chegando uma notificação judicial lá no escritório, só que eu já vou estar bem longe! (eu conheço essa porra aqui- aponta pra mão – quero ver me pegarem!)

Arthur (incrédulo) – Você tá brincando!...

Roberto – Eu tô brincando?! Você que vem com essa puta cara de bosta me dizer o que a minha mulher vai fazer! Você que no momento mais foda da nossa vida larga tudo pra ir atrás de uma historinha que você mesmo criou e resolveu acreditar!

Arthur – Eu não larguei nada! Desculpa cara, é que isso.../

Roberto – O quê?!

Arthur – É importante... Sei lá, porra!

Roberto – Arthur, eu lembro dessa mina... Você nem gostava dela!

Arthur leva as mãos ao rosto.

Roberto – Nem bonita ela era!

Arthur está rindo, assentindo, concordando com tudo.

Roberto (estende a mão) – Vem comigo cara! Vamo atrás do celular da última vítima. A polícia vai bater a qualquer momento...

Arthur meneia a cabeça enquanto ri.

Roberto – Vem comigo...

Arthur - Se um dia apagassem os nomes dos livros, você não precisaria fingir que gosta de Dostoiévski.

As luzes se apagam. Toca Street Spirit.

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