Cena 24

.

No escuro, barulho da tempestade enquanto toca a música.

À esquerda do palco, a mãe de Fátima acende uma vela em cima do fogão. Uma lufada de vento toca seus cabelos e apaga a vela.

No centro, um dos policiais acende a vela enquanto interrogam o Tubarão da Dutra. Ele se inclina à chama algemado com o cigarro na boca, e o acende. Lambe a ponta do dedo e aperta a chama. Essa também se extingue.

Na direita do palco, Letícia acende a vela sentada no chão. Enxuga os olhos marejados, e olha para a escuridão do teto.

Letícia – Ah, Fátima! O que foi que a gente fez?!

Arthur entra pela porta, encharcado. Letícia tira o rosto do foco tênue da luz e esfrega as lágrimas.

Arthur – Da última vez que choveu assim... A cidade tá um breu!

Letícia – A caixa, Arthur.

Arthur - A caixa é mais importante do que o que tem dentro?!

Letícia – Claro que não, era o segredo da vida dela...

Arthur – (provocando) E você pretende abrir a caixa?!

Letícia – É claro! Assim que o chaveiro abrir, na segunda... Mas antes eu queria vê-la...

Arthur – A caixa?

Letícia – É...

Arthur – Vale a pena perder o emprego por isso?

Letícia – Vale... – e fica em silêncio.

Letícia – Tinha mais alguma coisa além da caixa?

Arthur (hesita) - ... Não. O que mais você tirou da Fátima além do jeito que você fala e anda?

Ela não responde. Nem se importa agora. E quando fala, é com ela mesma.

Letícia – Me sinto aqui de novo... Mas agora viajando, nessa cidade... Mesmo querendo eu penso nas coisas do dia a dia. Do trabalho, no que eu disse pro chefe... No que eu teria dito se tivesse tido tempo pra pensar... Me sinto aqui, mas o dia a dia... Na boa, há muito mais que isso! Eu senti isso uma hora, como tem muito mais... Agora passou... Mas tem, mesmo assim!

Arthur – Você nunca deveria ter saído daqui...

Aqui ele vai para o outro cômodo e liga para a secretária.

Arthur – Cíntia, tudo bom? Eu preciso que você consiga um item pra mim, com a máxima urgência. É um relógio.

Agora só sua boca se move. Desliga e volta.

Ele vai até o ponto onde a caixa está e traz para Letícia. Sentada, ela segura a caixa no colo, entre os joelhos.

Letícia (virando-se para ele, sem orgulho) – Tinha mais alguma coisa além da caixa?

Arthur (hesita) - ... Não.

Letícia – Você falou com a mãe dela?

Arthur – Falei.

Letícia – Você entrou no quarto dela?

Arthur – Entrei.

Letícia – E aí?

Arthur – Aí nada... Tava limpo, tinha bem pouca coisa... Bem impessoal.

Letícia – E a mãe dela, sabe onde ela tá?

Arthur – Não.

Letícia – Ela acha que a Fátima pode estar morta?

Arthur – Não perguntei. Mas eu duvido que não exista nada dela na rede, no orkut ou no google. Sob um nome que eu nunca vou achar.

Arthur vai até a mesa e pega as chaves e a carteira.

Letícia – Tendo morrido ou não, pra mim ela já é mais constante que o vento que passa, mesmo quando ninguém sente, desde lá da serra, e junta poeira aqui dentro.

Arthur – Eu não acredito em fantasma – e sai.

Letícia (sozinha) – O fantasma de Fátima assombra Teresópolis.

As luzes se apagam...

Cena 25

... e ouve-se uma risada histérica de adolescente.

Letícia e Fátima no quarto dela se matam de rir. Elas se espremem junto ao espelhinho onde Letícia se maquia.

Letícia (rindo) – Pára, pára...

Elas param. Letícia pega o batom. Fátima faz uma cara besta, puxa a manga da blusa e cobre o nariz e solta um pio de curuja.

Fátima – Ô!

Explode a risada de novo.

Letícia – Cala boca sua vaca!

Fátima (retardada) – Tem!

Elas caem no chão.

Fátima (mais retardada, imitando alguém) – Onde, meu deus?!

Elas têm um acesso.

Letícia – Tô chorando!

Fátima – Não!!!

E volta.

Letícia é a primeira a se recompor.

Letícia – Sério, deixa eu terminar, porra...

Fátima fica calada do seu lado. Se olham. E riem.

Letícia – Pára caralho!

E volta ao espelho. Fátima já está pronta. Ela mexe no xale estendido na cama, mas desiste.

Letícia termina o batom e se olha em vários ângulos. E pára, contemplativa. Coça o seio por baixo da blusa.

Letícia (séria) – Alguém se masturbou pensando em mim.

Fátima – Quem?

Letícia dá os ombros, quando a imagem vem à sua mente. Ela faz uma careta.

Letícia – AH!!

Elas se matam de rir. Fátima pula nela como um monstrinho lambendo seu pescoço. Letícia grita e tenta evitar. Fátima desata seu soutien.

Letícia – Sai!!!

Fátima continua, enquanto Letícia segura a alça pra não cair. Fatia lambe seu rosto. E Letícia dá uma lambida na língua de Fátima, que grita. Fátima belisca seu peito e foge.

Letícia – Sai!

E volta a passar o rímel. Fátima sossega. Letícia dá o último toque. Está pronto.

Letícia – Tô linda... Eu vou casar com o cara que inventou o rímel!

Fátima faz algo atrás da cama e vem para perto de Letícia com a boca cheia. Fica olhando pra ela, quase grudada. Letícia olha e ri.

Letícia – Que foi?

Fátima esguicha água na sua cara perfeita.

Letícia – Ahh, filha da puta!

E corre atrás dela.


Cena 26

Arthur folheia o diário no outro canto palco, por um segundo, até se apagarem as luzes nele novamente e voltarem pra Fátima, que anda de trás pra frente em direção à bicicleta.

Ela sobe e pedala ao contrário. Desce da bicicleta e volta pro mesmo canto onde estava Letícia, mas agora escuro e vazio. A janela da casa de Arthur. Ela senta sobre suas pernas e enterra a cabeça entre os joelhos.

Dois segundos depois levanta a cabeça, e empunha uma tesoura longa e afiada. Puxa seus cabelos num rabo de cavalo e corta-o com a tesoura. Joga a mecha no chão e de novo anda de costas para a bicicleta.

Pedala novamente ao contrário, agora por mais tempo.

Desce e vai de costas até a cama, tirando toda a roupa. Engatinha de costas pela cama. E deita, sobre Arthur, que descansa semi-nu com as costas na parede.

Quando as luzes se acendem completamente, ela está deitada no seu corpo transversalmente. Ela joga um mini-game, envolta num lençol, com os pés inquietos.

Fátima (infantil) – Tô com frieira?

Ele examina, dedo por dedo.

Arthur – Não...

Fátima – Não é aí, é embaixo.

Arthur – Tem um comecinho aqui, mas não tá aberta...

Fátima – Eu não seco o pé... Acho chato! – diz com sua perplexidade falsa e graciosa e adolescente e sensual.

Arthur – Você não faz nada.

Fátima – É chato fazer coisas...

Ele ri.

Fátima – Né?

Arthur – Hum hum.

Fátima –Eu odeio!...

Arthur se move insidiosamente sobre ela.

Arthur – Você é maravilhosa...

Fátima (ri, sem tirar os olhos do mini-game) - Maravilhosa... Que palavra esdrúxula!

Ele a agarra em seus seios.

Fátima – Sai! Eu vou morrer!

Ele pára. Ela dá uma graciosa olhadela por cima do aparelhinho. Ele beija sua barriga, descendo.

Fátima – Vai se vestir!

Arthur (parando) – Me visto em dois segundos.

Fátima – Um, dois. Não se vestiu...

Ele levanta e pega as roupas, não sem antes mordê-la.
.

Comentários