Cena 27

.

Arthur lê em voz alta lá fora.

Arthur – “Estou na parada do ônibus”...

Entra Fátima, do outro lado do palco. Ela repete suas próprias palavras. As vozes se sobrepõe.

Arthur e Fátima – “É a primeira vez que cruzo o estado e não tenho ninguém pra contar. Tentei ligar pro Renato, mas esse número de telefone não existe. Tô com medo...

Fátima (só) - ... mas tô feliz. Vai dar tudo certo”.

Ela desaparece. Arthur vira a página.

Arthur – “Espero que esteja tudo bem e tranqüilo aí onde você está”

Ele suspira. Vira mais e mais páginas. Pára numa que salta por trazer algo dentro. É uma colagem, tirada de uma revista, que Arthur abre como se fosse um pôster de revista masculina.

Arthur – “Inspire-se nas passarelas para se vestir bem no primeiro emprego”

Ele lê o encarte por um segundo, em silêncio.

Arthur – Meu deus (ri amargurado). Só os piores conselhos! (e leva a mão à boca).

Letícia (saindo pela porta) – Arthur?

Arthur (fechando o diário) – Hum?

Letícia – Onde você tá?

Arthur – Eu tô aqui quieto.

Letícia – Vem pra dentro. Já disse que você pode fumar aqui, eu não ligo.

Arthur – Já vou...

Ele entra logo depois. Letícia sentada na beira da cama.

Letícia – O que vocês vão fazer agora? Do isqueiro...

Arthur – A gente pode encarar o julgamento. Não somos oficialmente fugitivos ainda, posso me apresentar... Mas não sei.

Letícia – E a empresa?

Arthur – Vou parar... Aconteça o que acontecer. Foi isso que eu percebi aqui... Seu eu escapar, vou começar do zero, fazer algo que acrescente à vida das pessoas, não ganhar dinheiro em cima do vazio da vida delas. Isso é inútil... Viver de besteiras...

Letícia (com medo de parecer burra) – Entendi...

Arthur –
Algumas pessoas não têm onde cair mortas e dão tudo o que elas têm por um pedaço de vidro ou uma foto velha... Acho isso deprimente!

Letícia (ri) – Os ricos sempre têm uma idéia melhor sobre o que a gente devia fazer com o nosso próprio dinheiro. Não acho deprimente.

Arthur – Tá, mas mesmo as que são ricas e podem pagar... Acho triste que as pessoas se apeguem tanto a algumas coisas em vez de viver a vida.

Letícia (para si mesma) – Um dia fui num show que eu não podia ir e passei o resto do mês sem dinheiro para ir na esquina. E quando era sábado à noite eu ficava em casa lembrando do show, cena por cena, de cada música. Ainda lembro. (vira-se pra ele) – Não acho besteira.

Arthur – Não, cê tá certa, não é besteira!

E vira o rosto.

Letícia – O que que foi, Arthur?!

Arthur – Eu vim aqui porque eu queria saber dela, mas ela não tá mais aqui! Fui na casa dela, passei pelos lugares... Achei que ia recuperar lendo o diário, mas não! Eu li tudo, mas ela não era assim...

Letícia – O diário?

Arthur – O diário dela, esse aqui! Mas ela não tá aqui! E nem poderia... Claro que não!

Letícia o abraça.

Arthur – Nós não somos o que a gente escreve! Nós não somos o que aconteceu com a gente! Nem o que a gente faz, nem o que a gente pensa. Nem o que a gente gosta! Nós não somos o lugar que a gente viveu. Nem o que a gente ganha. Nem o que a gente vai ser. A gente não é nem os sonhos que a gente teve!

Letícia abre a boca mas não termina o que ia dizer.

Arthur – Eu nunca mais vou ter ela! Não adianta. Eu perdi ela aqui e ela não volta mais!

Letícia o cala em seu ombro. Os dois ficam abraçados.

Toca “I am the highway”

E continuam abraçados.

Até Arthur se soltar de seus braços. Anda até o banheiro.

Enquanto ele vai, Letícia puxa o lençol e começa a desabotoar a blusa.

No banheiro, ele se inclina sobre a pia, abre a torneira e deixa a água correr pela nuca.

Letícia – Foi impressionante perceber que quando a Fátima sumiu, a graça da vida sumiu um pouco com ela...

Ele fecha a torneira e vê seu rosto no espelho.

Letícia tira a calça debaixo do lençol.

Letícia – Ninguém falava com a paixão que ela falava...

Abre o soutien e se encolhe.

Letícia – Mas acho que tudo já foi dito a respeito da Fátima.

Termina de deitar e se cobre.

Arthur sai do espelho e caminha em direção à porta. Atrás da porta, o quarto. Mas antes, as luzes se apagam.

.

Comentários