Final

Cena 28



Um celular vibra no breu com um brilho azul. Uma luz escura acende suavemente sobre os dois. É tarde da noite. Letícia dorme. Arthur acorda.

Arthur – Alô...

Roberto (do outro lado do palco) – Cara, desculpa te acordar...

Arthur – Imagina...

Roberto – É que eu acabei de ver um filme foda...

Arthur –
Filme?

Roberto – Chama “Viagem à Itália”... É sobre um casal que tá se separando...

Arthur –
Hum hum.

Roberto – Eles vão morar na Itália, ela é arqueóloga, ela tá escavando um fóssil de milhares de anos à margem do Vesúvio...

Arthur – E aí?

Roberto (toma fôlego) – No final, a arqueóloga descobre que o que eles escavavam era um casal, fossilizado pela lava, se abraçando e ela não aguenta – ela e o marido tão se separando... (enxuga os olhos) – No fim, na última cena os dois se perdem, tem uma multidão e eles tão procurando um ao outro, quando o filme acaba!

Silêncio.

Arthur – É lindo...

Roberto – Você acha que essas coisas acontecem no mundo real?

Arthur – Eu acho que acontece sim, cara... (incerto) Eu acho que sim...

A luz se apaga em Roberto. Arthur desliga.

Arthur liga para a secretária enquanto afivela o cinto e calça os sapatos.

Arthur – Cíntia... Desculpa te incomodar a essa hora, mas eu tô em Teresópolis e preciso de um chaveiro que atenda à noite.

Desliga.

Termina de abotoar a camisa e tira debaixo da cama uma luxuosa embalagem. Lá de dentro, tira um Givenchy novo, exatamente igual ao que Fátima deu para Letícia.

Estende o relógio e o checa sob a luz tênue.

Debruça-se furtivamente sobre Letícia e troca pelo outro relógio que está em seu braço, com cuidado para não acorda-la. E fica vendo ela dormir, com carinho.

Entra a música.

Vai até a porta com a caixa e volta com a chave. Anda até a beira do palco. Posiciona a caixa no chão logo à sua frente como se dentro tivessem cristais.

Ajoelha-se e abre com a chave. Solenemente, como se estivesse a encontrar um tesouro, muito raro.

Primeiro, remexe no pano que o protege. Não encontra nada. Quando percebe que o pano é o tesouro. É um lençol branco. Tira-o da caixa, mal dobrado. Levanta-se. E num movimento impetuoso estende o lençol, batendo-o na beira do palco.

Ele esvoaça como uma bandeira. No centro, uma pequena mancha de sangue seco.

É isso. Um lençol branco manchado de sangue.

Arthur entende, e deixa-o repousar em seus braços. Com a mão embaixo da mancha, traz a parte com sangue para perto do rosto, como se houvesse algo que pudesse ser decifrado de perto. Não há nada. Ele afasta o rosto e se recompõe. Dobra o lençol ainda mais mal dobrado e coloca-o de volta na caixa. Vai até a cama e deixa-a na cabeceira. Por fim, volta-se para Letícia. Ela dorme pesado. Ele se aproxima, dá um beijo em sua testa. E sai.

O palco demora a escurecer. No quarto, só a respiração da menina, indo e vindo.



Cena Final


Arthur anda até a boca do palco e liga o gravador para seu último registro.

Arthur - A pesquisa no google é a primeira a falhar...

Entra a música tema. E tudo se ilumina sobre Fátima, que corre em sua bicicleta percorrendo a cidade.

Arthur - ... Seguida por longas noites de busca em sites pessoais, pelas milhares de pessoas com o mesmo nome, e todas as variações possíveis.

Ela desce da bicicleta, com a mão cheia de balões de hélio, e corre pelas divisões de cortinas, arrancando-as. Um a um ela vai soltando os balões, que sobem em direção ao céu.

Arthur - Depois vem as comunidades, dos lugares onde um dia passaram e onde ela poderia estar. Até chegar nos fóruns, das coisas que ela gostava ou que você imagina que, sendo quem era, acabaria se interessando.
E então as agendas velhas, com os números de telefone que não existem, até chegar à procura física, os amigos da escola e os íntimos só dela, que até onde você sabia, nunca iam se separar. Um a um vão fechando os lugares, onde ela tinha estado pouco antes de você, há dois anos. E os novos amigos que você não conhecia, com informações contraditórias de onde ela tinha ido, da última vez que se falaram. Que te levam até a casa, em outro endereço, e o quarto... Você entra... E por fim vê a foto dela, que você olha e não reconhece mais, nem a ela, nem você.

É quando percebe que ela quase nunca existiu!

É como se todas as luzes fossem morrendo aos poucos, por toda a cidade, até a última tv que se apaga com o timer.

E foi então, no dia 30 de novembro de 2011, que eu esqueci... Fátima.



Epílogo



Fátima com a vassoura na mão está debruçada sobre o forno aberto. Tira de lá um bolo, numa forma retangular. Ela canta.

Fátima – Você sempre está em minha mente / Sempre você e ninguém mais

Coloca-o quente em cima do fogão, e volta a varrer.

Fátima – É de você que eu me lembro... Só de você e ninguém mais... E ninguém mais... E ninguém mais...

Ajeita a alça da blusa.

Fátima – Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro... Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro, eu não consigo...





Fim





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Comentários

Anônimo disse…
Nossa, que original, Fátima cantando Walder Wildner...Brilhante, rapaz!
Anônimo disse…
Errata: Wander*
Zé Raimundo disse…
Oi Filipe, devido a correria da vida, só hoje estou fazendo um comentário.
Gostei muito cara, seu esforço não foi em vão, pelo contrário, todo esse tempo que você se dedicou à essa peça, resultou nesse texto de qualidade que merece ser transportado para um livro e posterirmente o palco. Só quem escreve sabe a dificuldade da criação e imagino quanto sofrimento foi derramado sobre o papel(ou teclado) para materializar tudo isso. Senti um olhar bastante positivo no final, quando ela retira o bolo "quente" do forno, lembrei-me da odisséia metafórica desse bolo. No início, o forno representava o abismo que traria a morte, no final ele traz o alimento quente, cheio de vida.
Mesmo citando a frase do Wander Wildner fora do seu contexto nonsense, ela tem um peso imenso. Além de ser impossível, é triste ser alegre o tempo inteiro, pois essa é a maior das fugas.

Abraço e parabéns!