Letícia – Não sou pobre! E vocês por acaso atendem elas?

Arthur (esquivo) – Eventualmente...

Letícia consegue conter as lágrimas e retoma a sua postura. Artur, exageradamente condescende, tenta não deixar transparecer o que pensou para não ofendê-la.

Arthur – Letícia, me diz, de que tipo de objetos estamos falando? Qual a natureza do objeto?

Letícia (fazendo um pequeno cubo com as mãos) – Uma caixa!

Arthur – Uma caixa? De madeira?

Letícia – É...

Arthur – Só a caixa?

Letícia – E o que tem dentro...

Arthur – E o que tem dentro?

Letícia – Isso...

Arthur – E o que é que tem dentro?

Letícia (já achando-se estúpida e rendida) – Não sei...

Arthur – Então não é sua... De quem é a caixa?

Letícia – De uma amiga minha.

Arthur – Isso é bem incomum... Geralmente nós procuramos por objetos de pais, filhos, namoradas perdidas... Amiga é raro.

Letícia ( com os olhos cheios d´água) – É que ela me ajudou na minha hora mais negra.

E chora por um instante. Artur vai até ela, que o encara.

Letícia – Quanto sairia isso?

Arthur – Quanto tempo faz?

Letícia – Dez anos.

Arthur – Dez anos que ela faleceu?

Letícia – Dez anos da ultima vez que a vi.

Arthur – E onde foi isso?

Letícia – Teresópolis.

Arthur – Ah, você é de Teresópolis?

Letícia – Sou de Petrópolis. Mudei pra lá no Colegial, fiz o segundo e o terceiro.

Arthur – Eu sai de lá no primeiro. Morei um tempo lá, até que meus pais se mudaram pro Rio. Fiz da oitava até o primeiro em Teresópolis, no Urbano.

Letícia – Eu também fiz Urbano! Quantos anos você tem?

Arthur – Trinta... E você?

Letícia – Faço vinte e oito hoje.

Arthur – É mesmo? Parabéns! Parece bem mais nova, você tem cara de dezoito.

Letícia (ri) – Também sinto assim... Que mundo pequeno! Se tivesse continuado lá, a gente teria se conhecido.

Arthur – É... Mas improvável... Quando você entrou eu tinha saído há um ano. E se eu tivesse ficado, quando você entrou no segundo eu já estaria formado.

Letícia – É... É verdade.

Arthur – Mas voltando, qual era o nome da sua amiga?

Letícia – Fátima...Fátima Marques.

Arthur pára por um instante.

Arthur – Fátima Marques?

Letícia (com um desdém malicioso) – Você conheceu a Fátima?

Arthur – Fátima Marques, era uma menina de cabelo castanho, que fazia uma ponta, meio quase gordinha...

Letícia – A Fátima que eu conheci era bem magra, de cabelo curto e vermelho.

Arthur – Era uma que morava na entrada da cidade e tinha um cachorro?

Letícia – Morava no centro... E não me lembro do cachorro.

Arthur – Fátima Marques... Só pode ser! Quantos habitantes tem naquela cidade?

Letícia – Não faz pergunta difícil.

Arthur – Tinha olhão grande, boquinha de atriz de filme mudo e gostava de Legião Urbana?

Letícia – Isso! Isso mesmo.

Arthur – Como é que...

Letícia – Se bem que depois ela parou de gostar de Legião.

Arthur – Todos nós paramos. Quando foi a última vez que você viu a Fátima?

Letícia – Já te disse, faz dez anos...

Arthur – Como você conheceu ela?

Letícia – Na escola, no Urbano...

Arthur – Não pode ser, ela tinha a minha idade. Fizemos o primeiro colegial juntos, mas em classes diferentes. Ela era da B e eu era da F.

Letícia – Ela repetiu de ano.

Arthur (após uma pausa) – Entendo.

Letícia – Então, é uma caixa de madeira, de conteúdo desconhecido, “perdida” há dez anos e que pode estar em qualquer lugar, mas provavelmente está em algum entre Teresópolis, Petrópolis, Rio ou São Paulo.

Arthur – Por que você acha que pode estar em São Paulo?

Letícia – Porque pode. (suspira) Quanto ficaria tudo isso?

Arthur (silêncio) – Muito.

Letícia meneia a cabeça contrariada e deixa escapar um sorriso de escárnio.

Arthur – Uns vinte, vinte e dois mil reais.

Letícia concorda por um instante pensativa, e o encara com dignidade.

Letícia – Eu pago.

Arthur assente, concordando. Pega o telefone.

Arthur – Cíntia, manda um contrato de locação de vinte e dois mil reais – Desliga e vira-se para Letícia – O valor de vinte de dois mil reais é para uma busca de até trinta dias. Metade, onze mil no ato, a outra metade a ser paga na entrega. Caso o objeto não seja localizado, não devolvemos a quantia inicial.

Letícia (demora um instante) – Tá certo.

Arthur – Agora Letícia, tem algo que não ficou muito claro. Precisamos ser honestos um com o outro. Me diga uma coisa...

Roberto irrompe na sala, com um jornal nas mãos.

Roberto – Olha isso aqui: Adolescente é encontrada morta às margens do Rio Tietê. O corpo da jovem, que tinha entre vinte e vinte e cinco anos, foi reconhecido por um frentista que trabalhava num posto na Via Dutra na cidade de Taubaté – São Paulo. A jovem teria pedido informação e a chave do banheiro daquele posto no dia em que foi assassinada. A garota ainda não foi identificada. O caso foi registrado no 24° DP, e será encaminhado para a Polícia Federal, e Policia Federal Rodoviária. Toda essa mobilização revela que há algo no caso que inquieta os investigadores. A policia suspeita que esse crime possa ter ligação com o caso das diversas jovens que foram dadas por desaparecidas nos últimos quatro anos.

Entra o assassino se barbeando.

Roberto - As jovens, todas entre quinze e trinta anos, bonitas e residentes em cidades próximas à Via Dutra, teriam sido vistas pela ultima vez em um dos 68 postos e restaurantes da rodovia que liga as cidades do Rio de Janeiro a São Paulo. Segundo o delegado Marcus Costa a dificuldade nessa investigação reside no fato de que as queixas foram prestadas nas delegacias das cidades onde essas jovens viviam, e nunca repassadas para a Polícia Federal. Outra dificuldade, segundo o delegado, vem do fato das possíveis vitimas e suas famílias, não serem bem vistas nas comunidades onde viviam e tidas como de índole violenta, libertinas, desequilibradas, dependentes químicas ou simplesmente indisciplinadas, o que inibiria a busca pelos familiares.
Mas com a descoberta do corpo, a policia trabalha agora com a hipótese de seqüestro seguido de homicídio. Os investigadores já iniciaram as buscas por um homem, tido como principal suspeito, que tem sido visto em diversas localidades por viajantes e funcionários dos postos, há exatos quatro anos. Ele já é chamado pelos populares de “Tubarão da Dutra”. A Policia recomenda cautela nos postos e paradas da rodovia, e pede para que as jovens com o perfil das vítimas não viagem desacompanhadas, e circulem munidas sempre de documentos, pelo menos até a conclusão das investigações.

Letícia – “Procurem não fugir de casa em desespero entre essa semana e a outra”. Palhaços.

Arthur ri. Roberto, surpreso com a presença da garota, ri também.

Roberto – Desculpa, estou atrapalhando?

Letícia – Não, imagina... Já tava indo embora.

Se levanta e pega a bolsa.

Arthur – E o contrato? Não quer esperar o con/

Letícia – Eu já tô atrasada, amanha eu passo pra pegar, mas muito obrigada mesmo assim... – E Sai

Roberto – Quem era? Desculpa, eu/

Arthur – Era uma conterrânea, de Teresópolis.

Roberto – Mas e o que ela queria?

Arthur – Relaxa, não vai voltar. Mas e aí, um assassino na Dutra, que pega caipirinhas perdidas na estrada, mata, estupra e faz mais sabe-se lá Deus o quê? E daí?

Roberto – Esse jornal é de outubro do ano passado.

Arthur – Isso significa que o cara ainda não foi pego, porque a essa altura a mídia ia fazer o maior circo e até a gente saberia.

Roberto – Isso!

Arthur – E que provavelmente ele continua por aí e nunca mais repetiu o vacilo do corpo na margem do rio.

Roberto – Exatamente! E a policia tá escondendo a investigação porque, como você mesmo disse, essa seria a história do ano. E se a mídia não ta cobrindo passo a passo é porque a policia ou não encontrou mais pistas ou trabalha com muito pouco e não divulga, com medo do cara sumir.

Arthur (impaciente) – E daí? Ta com a faca que ele usa aí, enfiada nas suas costas?

Roberto – Melhor! (tira o celular do bolso e se aproxima da mesa) Hoje um investigador da policia me procurou. Encontraram o celular da última vítima descarregado num pardieiro. Ela recebeu uma mensagem, do meu celular, na tarde em que desapareceu.

Arthur – Do seu celular?

Roberto – Eu estive com o assassino. Me lembro dele, eu tava na Dutra. Pediu meu celular e mandou a mensagem.

Arthur – E como você sabe que era ele?

Roberto – A policia me ligou! Meu número, mesma data, mesma mensagem.

Arthur – E onde a gente entra?

Roberto (servindo dois copos de whisky) – Eu falei com o investigador, eles devem estar pegando o cara por esses dias, eles tem outras provas. Ele vai me vender o celular da moça! – E faz um brinde.

Arthur (chocado) – Mas...(ri)

Roberto – Esse vai ser o crime do ano, imagina, se ele ta há cinco anos ai, todas essas moças...Vai marcar a juventude de muita gente!

Arthur (assentindo) – Beleza... E quanto é que dá pra gente tirar?

Roberto – Hoje? Uns vinte mil, mas com a regra dos dez anos, vai no mínimo triplicar!

Arthur – E quem você acha que vai comprar isso?

Roberto – Daqui a dez anos? Cara, sabe como tão chamando o assassino? “Tubarão da Dutra”! E a mina era linda, e vi a foto. As outras também devem ser, mas essa aí... Nossa!

Arthur – E o celular, tem foto?

Roberto – Não, mas tem todas as mensagens que ela recebeu desde o ano passado! Mãe, amigas, ex-namorado, até a ultima do Tubarão.

Arthur – Não chama ele assim, é ridículo!

Roberto – Agenda, com todos os telefones, de todo mundo.

Arthur – Certo, certo. O procedimento agora seria ir atrás de todas essas pessoas, descobrir quem era ela, o que fazia, aí fazer uma mini – bibliografia bem digerível da menina e fazer uma historia com o celular, mostrando como ele foi importante na vida dela e também na sua perdição.

Roberto – Perfeito! Mas tem que ser uma biografia bem digerível mesmo, bem fácil de julgar... A pobre vagabundinha fugindo na estrada. Ponto. Ninguém tem saco para mais coisas.

Arthur (sarcástico) – E você quer que eu faça isso?

Márcio – Bom, eu tô trabalhando pra livrar a nossa cara.

Arthur cruza os braços em silencio.

Márcio – Mas porra, Arthur...

Arthur – Tá certo, deixa aí que eu vejo...

Márcio (deixando a papelada em cima da mesa) – Marcaram a audiência pra daqui a duas semanas. Já tamo preparando a defesa...Eu nunca falei que o isqueiro do Mariguela era original...Você falou?

Arthur – Não... Mas também nunca mencionamos que era uma cópia.

Márcio – Acho que posso provar o contrário. (Dá uma piscadela) Se cuida meu velho, manda brasa nisso aí...

Arthur – Tá, tá bom.

Roberto sai pela porta. Silêncio na sala.

Arthur dá um suspiro e se recosta na poltrona. Finalmente, liga o computador, pega o memorando, mas não dá mais que uma espiadela antes de voltar a jogá-lo na mesa. Entra no google. Digita: músicas do Hole e aperta play.

Telão: Marina Gonçalves Leite. Hesita por um instante. Marca o nome com o mouse e digita em cima: Fátima Marques.

Telão: 12.408 resultados para Fátima Marques.

Telão: “Fátima Marques”

Telão: 8 resultados para “Fátima Marques”

Arthur entra em cada um deles. Um é um resultado de encefalograma, de uma Fátima Marques de Sousa, no Hospital Mater Dei, Ceará.

O outro é a cobertura de uma enchente na seção “Eu Repórter” de um Jornal do Paraná. Outra ainda é uma lista de aprovados em Letras na USP. Ele faz as contas na calculadora do computador, e conclui que ainda estavam no segundo colegial.

Por fim, uma garota que foi encontrada morta por afogamento nas margens do rio Tejo, em 2001 – Clica na foto. Não é ela.

Depois, entra no orkut e procura por fotos de Fátima Marques, uma por uma, em diversas poses até a última delas.
As fotos vão ficando mais imprecisas, como num fade. As luzes se apagam.

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