Pietra versus Hati




























Essa é uma história que não será escrita.
Creio ser justo avisar antes de tudo começar. Você não chegará ao fim, bem antes dele, irá se perder. Nesse labirinto. Nesse vazio.

Seu nome, como se de fato isso tivesse alguma relevância, é Pietra.
À semelhança de Pedro, o nome significa pedra em latim.
Esse fato, por si, já poderia resumir sua densidade espiritual em uma afirmação propositalmente dúbia. Não se preocupe em tentar compreender o que digo; apenas respire, talvez ainda leve alguns anos ou somente alguns minutos para notar... Mas no fim, acredite, você vai entender.
Confie em mim.
Você irá vê-la. Sim...Você vai.

O olhar terrivelmente escuro, devido à sombra existente em torno da claridade fantasma do rosto. Seus olhos como opalas, flutuando sobre duas páginas em branco, revelavam as milhares de histórias possíveis e não escritas. Tudo o que ela não viveu estava ali, escrito neles.
Os cabelos feito seda negra, elegantemente desalinhados.
A camada superficial e fina da pele, que parecia manter-se sempre exposta ao vento noturno, assim como os pontos fluídos do corpo. Todos em harmonia singular com a soma dos medos reunidos na figura dela.
Concentrados até a essência.
O perfume de incenso e o gosto de canela, vertendo ardido, entre lábios e dentes. A sensação perpétua de intangibilidade que rodeava sua presença.
A aura impenetrável e mítica de seu corpo esguio, em constante e calculada tristeza.
Parecia tão evidente, nas tatuagens e cicatrizes, que Pietra almejava ser única, mas sendo cruel e pontual ela era comum. Raros eram os eventuais sorrisos, eles pareciam extintos.
Comum, era aquela melancolia insípida, específica de quem abandonou milhares de locais sem ser notada. Sem de fato ter estado presente naqueles cenários
Sem ter realmente vivido essas vidas.
Compreenda, ela era a ausência.
Exatamente, o que você sente quando não entende o que encontra-se fora do lugar ao olhar-se em um espelho. A falta quando você acorda e não sabe se o dia está começando ou terminando, nem o que deixou de viver enquanto tentava desesperadamente sonhar. Pietra tentava muito sonhar...porque em sonhos a vida talvez fizesse sentido.
Com alguma sorte, finais felizes seriam possíveis.
A despeito desse desejo constante, eu não posso afirmar que Pietra estava. O mais correto seria afirmar que ela permanecia em transe. Solta entre segundos, deslocada da vida.
Intangível.
Intocável.
Invisível. Muitas vezes, era como se ela simplesmente não estivesse presente...
Você podia enxerga-la deitada sob uma imensa árvore negra, com milhares de folhas acobreadas, mas ela não estava realmente ali.
Você poderia vê-la, sozinha no centro de seu labirinto... mas ela não estava ali e como havia sido a cada segundo, desde que ela aprendeu o significado mas não o sentido da palavra "eu", "ela" estava sozinha. Ausente.
Imersa em seu "mundo". Vivendo entre "aspas".
Protegida dentro de seu labirinto, sob todos os milhares de ramos de outono, que a mantinham quase imune a visão da Lua. Ela detestava ver a noite.
Havia algo no céu escuro, na profundidade dos tons prussianos de azul e mais exatamente, na cintilante grandeza da Lua, que incomodava-a terrivelmente.
Era difícil aceitar que o satélite não estava flutuando preso por sua presença, mas sim, pelo laço da terra. Era incômodo, sem dúvida, saber que o Sol não dispunha-se a girar em torno dela. Todos aqueles corpos celestes existiam independente da sua vontade, presença ou influência. Ela não ocupava o centro do universo e diante de tal erro, nunca cogitou olhar as aglomerações de estrelas pairando sobre sua cabeça.
Elas estavam no lugar errado.

Pietra parecia concentrar-se demais na distância que existia entre seu ventre e estômago, para apreciar o mundo externo.
Tudo resumia-se ao labirinto onde ela vivia. Tudo resumia-se a ela.
Limitava-se aquelas pedras geometricamente organizadas e isso bastava. Limitava-se a ela. Aquele seu mundo deveria bastar.
Nada de constelações, supernovas ou nebulosas. Somente as pedras e isso deveria aplacar sua fome. Então; por que não parecia ser o suficiente?
Os quilômetros de paredes erguidas como um intricado desenho nunca puderam saciar todas as suas necessidades. Faltava-lhe algo.
Existiam todas as belíssimas gravuras negras e sinais estendidos sobre as rochas, do exterior até o núcleo. Segredos de beleza única em cada novo corredor.
Então por que não bastava?
Mistérios fabulosos, que ao longo dos anos atraíram muitos visitantes incautos, fazendo-os ser delicadamente capturados e devorados pelo labirinto, a semelhança de insetos atraídos por flores.
O crânio seco de um minotauro, junto da árvore onde Pietra estava encostada, era uma prova disso... uma medida de quão fatal era todo aquele lugar.
Afinal um labirinto, por definição, é um conjunto de percursos intrincados. Criados com a intenção de desorientar quem os percorre. A natureza do labirinto é esta, isto faz dele o que ele é. Uma armadilha, que desorienta você, até o ponto de não enxergar uma saída.
Se isso ainda não está claro para você, Pietra era o labirinto.
Ela permitia à aquele amontoado de rochas, definir quem ela era. Decidir o que deveria ou não ser sentido.
Você consegue vê-la agora, não é? O olhar negro de henna, a adorável displicência dos movimentos das mãos e dedos longos, cravando-se na terra cada vez que ela dispunha-se a levantar. Os tons de ônix e ametista de suas roupas. A ausência.
Você quase consegue ouvi-la.
A voz espalhando-se na escuridão da noite como ondas. Expandindo-se e então recuando, até resumir-se ao silêncio, que seria quebrado com a aproximação quase imperceptível dele por suas costas, como uma sombra.
Contudo, ele ainda não tem importância, tudo resume-se a ela.
E se a imagem dela ainda não está clara para você, pare um pouco, levante-se e vá até o espelho. Fixe em seus olhos, após a íris cristalina e você irá encontra-la... ao menos e certamente, uma parte dela.
Você vai vê-la.
Pietra; com a curiosidade e calma, próprias de uma diva, moveu os olhos. Levantou a cabeça e dignou-se a olhar, por entre os galhos, para ver a Lua.
Imaginava se ele escutaria sua voz... se logo estaria ali outra vez.
Ela podia senti-lo toda vez que olhava para o céu. Intuitivamente sabia que seu inimigo estava ali. Correndo como um cão vadio atrás de um osso, tentando obsessiva e eternamente devorar a desinteressante e obtusa pedra flutuando no espaço acima de todos. Devora-la para preencher o inominável vazio que dominava a alma dele.

"Hati..."

Pietra disse o nome uma única vez em um sussurro e então calou-se.
Não era necessário mais do que isso. Nunca havia sido preciso mais do que o simples desejo dela para evocar a presença de seu estimado algoz.
Porém hoje ele não viria. Não como antes... como sempre. Parte dela já sabia disso.
Durante muito tempo Hati lhe serviu cegamente, ele foi sua única companhia e platéia. Agora, diante maciço silêncio do labirinto, Pietra compreendeu que o cão não cederia.
Aquela fera irracional, como ela se atrevia? Ela pensava.

Ele sempre foi arrogante... parecia ser capaz de percorrer os corredores de seu lar sem se perder, ao contrário, era atraído pela intricada formação de rochas. Fascinado por toda a aparente profundidade. Sempre determinado a conhecer todos os caminhos possíveis. Sempre mencionado quando Pietra precisava sentir-se "possível" ou quando o peso das paredes do labirinto tornava-se insuportável.
Ele era chamado e atendia. Incondicionalmente.
Hoje, ao terminar de falar e olhar para a Lua, Pietra percebeu o que aconteceria.
Com certeza ele tinha escutado seu nome...

Seu nome; como se de fato isso tivesse alguma relevância, era Hati...mais tarde a palavra ganharia a pronúncia de hate... em uma tradução aproximada Hati significava "ódio". Simples assim.
Na mitologia nórdica ele era um grande lobo que toda noite caçava Máni, a Lua.
Segundo essas histórias, os eclipses lunares ocorriam porque Hati, em determinados momentos ficava perto de conseguir seu objetivo. Seu corpo cobria todo o satélite e seus dentes riscavam a superfície lunar que escapava da destruição no último instante.
Dizem que as crianças batiam potes e faziam muito barulho nas noites de Lua Nova para tentar assustar o lobo e assim, evitar que ele devorasse sua caça.
As faíscas geradas pelos potes podiam atravessar o céu e cegá-lo, em terra, essas luzes seriam vistas como estrelas cadentes.
Hati, de fato, detestava a luz mas não sentia medo. Ele nunca sentia algo.
Não seria a luz realmente a detê-lo, mas a certeza do inevitável, cedo ou tarde a Lua seria dele. Havia tempo para esperar o destino. Hati sabia que na era do Ragnarok, ele finalmente conseguirá capturá-la e parti-la entre seus dentes. Esse desejo, por si, já poderia resumir a densidade espiritual dele em uma afirmação propositalmente dúbia.
Não se preocupe... apenas respire; talvez ainda leve alguns anos para entender isto totalmente ou mais alguns minutos.
Mas acredite em mim, você vai entender.
Confie em mim.
Você irá vê-lo.
Sim. Você vai.

Não é difícil ver um lobo.
A imagem está presente no inconsciente coletivo, como um resquício da época em que os seres humanos eram os caçados. Hati era apenas um lobo, um objeto brutal, sem intelecto ou princípios.
Se é verdade que os olhos são as janelas da alma, então aquelas, eram cobertas por muitas camadas de pó e mágoa.
Amarelos e opacos, desprovidos de vida, havia tanta fúria desorientada neles.
Como os vitrais de uma catedral, eles tentavam ocasionalmente deixar alguma luz entrar, mas recusavam-se a permitir que algo saísse. Pareciam guardar em seu interior um rancor refinado inúmeras vezes e as virtudes que acompanham os tornados.
Aquela fera era firmemente incontrolável.
Os caninos cerrados continham as palavras e aguardavam ansiosos pela Lua que deveria ser esmagada entre eles. A forma ácida de sorrir, com fileiras de dentes afiados à mostra, saboreando o momento. Os pêlos negros sobrepostos, o aspecto organizado deles criava um paradoxo entre as demais partes.
Partes que se contradiziam.
Ele era partes, nunca o todo, como um quebra cabeça.
Um enigma formado por propósitos diferentes.
Não havia aroma ou gosto em torno de sua existência; para todos os efeitos, ele parecia uma imagem bidimensional desprovida de vida. O próprio eclipse da alma.
Insensato.
Insensível.
Incansável em sua existência. Ele não deveria ter carne, sangue e músculos que ficassem cansados. Não seria adequado parecer frágil, isso tiraria parte da invulnerabilidade
necessária a sua função e vital para sua sobrevivência. Monstros não choram. Eles tem que ser reais para causar medo. Precisam ser fatos.
Compreenda.
Hati era a presença opressora, constante e obcecada. Essencialmente; o que você sente quando olha por trás dos ombros, para o vazio e tem certeza que até poucos segundos atrás existia algo ali, parado, observando seus passos.
O incômodo quando você enxerga cada pequeno detalhe de uma história e percebe às milhares de coincidências improváveis que ligam os fatos e personagens entre si, partes que nunca poderiam ter unido-se ao acaso.
E se a imagem dele ainda não está clara para você, pare um pouco, levante-se e vá até o espelho. Fixe em seus olhos, após os cantos vermelhos, e você irá vê-lo.
Ao menos e certamente, uma parte dele.

Na última hora, Hati permaneceu imóvel, sentado no ponto mais alto da cidade, observando por um longo tempo seu irmão Sköll correr inutilmente atrás do Sol.
Enquanto aguardava o anoitecer, e o fracasso de sua contraparte, ele tentava não lembrar de Pietra. Procurava apagar seu nome.
A voz, as palavras e a falta dela. Não lembrar de sua companhia, dos pensamentos e principalmente esquecer o labirinto onde por tanto tempo ele viveu até perceber que sua presença era somente um detalhe exótico à trama.
Foi em uma noite como aquela que Hati conheceu Pietra.
Ele estava entretido caçando, correndo pelo céu com a mente quase apagada, quando viu entre as nuvens o imenso labirinto estendendo-se no chão.
Possivelmente foi simples curiosidade que o levou a entrar e atravessar a infinidade de corredores até o coração daquela construção.
Custou algum tempo para ela notar a presença dele.
Hati estava em uma das sombras, calado, diante daquela profusão de sentimentos e emoções tão evidentes que rodeavam a imagem dela.
Pietra não esperava visitas. Na verdade, não acreditava que alguém poderia chegar até ela, ao menos não vivo ou sem desejar algo em troca. O inesperado intruso não seria uma exceção a regra. Ele, como todos os demais, desejava algo.
Inconscientemente Hati queria aprender a sentir. Sem dúvida, este era um pedido muito menor do que os dos visitantes anteriores.
Ser menos como o que ele era e torna-se próximo da imagem dela.

Levou algum tempo para Pietra compreender que não estava mais sozinha, menos tempo para definir que essa sensação lhe era agradável. Do que vale afinal toda a beleza do universo se ela não tiver testemunhas?
Hati e Pietra pareciam assimetricamente diferentes.
A sensibilidade para ele, acostumado com seu mundo árido, era tão doce.
O inverno para ela, acostumada com seu mundo silencioso, era tão intenso.
O tempo seguiu, tornou-se comum ver os dois juntos.
Quando escurecia Hati não procurava mais a Lua, ele nem lembrava de olhar para o céu. Antes mesmo do Sol desaparecer, já estava deitado próximo de Pietra.
Ela, por sua vez, não lembrava que ainda estava dentro do labirinto, nem sentia-se sozinha... vivia livre. Vivia única, como o núcleo de todo universo, sempre que deitava sob os olhos cuidadosos de Hati.

Ambos compartilhavam a indivisível incerteza que é estar ligado a alguém.
A dúvida constante sobre quem controlava quem.

Não sei exatamente em qual ponto a história deles se perdeu.
Certas histórias não deveriam ser escritas.
Houve um ponto de quebra qualquer, onde Pietra e Hati perderam-se um do outro. Neste desencontro, deixaram de ser "e", para tornarem-se "versus". Pietra versus Hati.
Se era um fato que somente os olhos dele conseguiram enxerga-la e que apenas ela foi capaz de atrair o olhar dele... ambos pareciam agora determinados a perderem-se em um ato de vingança aparente.
Hati pensava que Pietra sentiria a dor do que era ser invisível como ele.
Pietra pensava que Hati sentiria o medo do que era ser cego como ela..

Monstros não devem sentir remorso.
Não sentem medo de ficar perdidos.
Nem choram.
Desculpe-me por não poder precisar isso. Sei apenas que a história deles não foi escrita.

Hati não tornou-se mais humano, nem aprendeu com sua amiga o que poderia trazer-lhe paz. Pietra não tornou-se mais forte, nem aprendeu com seu amigo como era existir.
Ambos se perderam em algum lugar. Lamento não ser capaz de uni-los.
Agora é tarde.
O final da tarde.
As nuvens vermelhas no horizonte oeste já anunciavam o fracasso da caçada.
Não era realmente surpreendente. Hati vigiava as falhas de seu irmão a cada novo entardecer nesses últimos séculos, ele nunca achou que Sköll tinha a fibra necessária para capturar o Sol.
A honra de abrir as portas do inferno para o mundo deveria ser dele e de ninguém mais. Hati sorriu quando o Sol desapareceu... então voltou-se para o horizonte oposto, a Lua tinha sido revelada com o poente.
Um segundo, um simples segundo depois e ele já estava correndo na direção dela.
A respiração vindo em intervalos compassados. O sangue infiltrando-se nos músculos, pulsando forte, obrigando-os a ir mais rápido.
O ritmo obcecado a cada nova passada, a urgência evidente nos olhos.
De tempos em tempos ele olhava para frente, certificando-se que não havia um carro ou prédio em seu caminho. Imediatamente depois, voltava os olhos para a Lua e corria. Lançava-se com mais angústia atrás de seu desejo. Procurava os obstáculos, não por importa-se em atingi-los, mas porque se isso ocorresse seria perdido um tempo valioso. Imprescindível.

O vento noturno empurrava seu corpo de uma sombra para outra sempre para o alto. A cidade chegava ao final, mas a caçada continuava através de campos e vales. Por cima de outras tantas cidades. Logo vinham as nuvens e entrar em cada uma delas era como desfazer um véu frio.
Aquelas pessoas lá embaixo já não olhavam mais o céu... como podiam viver assim? Viver sem tudo isso. Como? Pensava Hati.
Aquela miríade de estrelas, concentradas em nuvens. A beleza fundamental de toda a escuridão sem fim. As vezes Hati se perguntava se eles notariam quando a Lua fosse capturada, já que mal a encaravam. Talvez só notassem a tragédia quando os primeiros fragmentos caíssem sobre a Terra.
Diante de seus olhos amarelos e secos, eles... todos eles arrastando-se com medo na terra eram os monstros. Eles eram insensíveis.

Hati atravessou uma grande tempestade trazendo na esteira de seus passos o rastro de nuvens negras. Depois dos raios e da tormenta estava sua presa, a Lua esperava por ele. Brilhante e ao mesmo tempo pálida. Provocando-o a ir mais alto, mais forte, mais longe.
Ali, onde o céu termina e o ar tornava-se rarefeito, as nuvens sumiam e ele reduzia-se a um animal que não chegava a notar os pequenos e grandes aglomerados de luzes na terra, as cidades e suas estrelas noturnas eram somente grãos. Ele sabia que elas estavam lá...conhecia todos aqueles detalhes sincronizados que compunham o cenário. Mas agora eles não importavam.
Os barcos de pesca parados no mar e os homens dentro desses barcos, conversando sobre a esperança de dias melhores e sobre mulheres. As lâmpadas sendo apagadas nas casas e prédios. A mão do rapaz puxando a arma. A velha sentada na sala daquela casa tão grande e vazia. A menina de treze anos escrevendo em seu diário sobre a boneca nova que ela queria ganhar e na página seguinte sobre como ela perdeu um amigo durante o bombardeiro, feito em sua cidade por soldados que nem conheciam o nome dela.
As preces tão parecidas em diferentes ruas, templos e igrejas. Tão iguais, vindas de bocas com cores, palavras e línguas distintas. O escritor aprisionado diante das folhas em branco, no quarto revirado, esperando a visita da inspiração.
As pessoas, as centenas de milhões de histórias diferentes... Não importavam. As demais divindades, os antigos deuses e os novos, os imortais e os efêmeros, as lendas vivas ou mortas, prostradas acima e abaixo de Hati, eram apenas aglomerados de vazio inexpressivo.
Eles não eram nada e apenas um monstro poderia ver os fatos assim, poderia ter a concentração necessária para ignorar todas essas vidas e seguir atrás de seu objetivo derradeiro, a maldita Lua.
Monstros não choram.
Não sentem.
Não são.

Enquanto sentia seus olhos ardendo por conta daquela estúpida criança que chamava-se Júlia, Hati tentava crer que a dor dentro dele era um reflexo do frio das grandes altitudes, e não compaixão diante das palavras escritas no diário da menina. Perante tudo que lhe parecia terrivelmente sem sentindo.
Ele sentiu as lágrimas escorrerem, fez isso sem demonstrar qualquer alteração, procurava convencer-se que não se importava.
Enquanto chorava... tentava desesperadamente acreditar que Pietra não tinha deixado algo nele. Era só uma questão de correr mais rápido e deixar isso para trás.
Mais depressa...
O que deveria existir era a Lua, a cadela cintilante bem diante dele. Ela parecia tão próxima e possível, flutuando no espaço negro. Tudo o que ele desejava era destruí-la.
A saliva formava-se na boca do lobo, umedecendo a língua.
A Lua estava tão perto. Ele abriu as mandíbulas, seus dentes riscaram a superfície prateada tentando permanecer cravados, deixando marcas que mais tarde os astrônomos chamariam crateras e vales.
A Lua finalmente era dele. Ela não tinha como escapar.
Bastava agora pressionar, fechar os caninos e destruí-la.
Foi quando ele ouviu a voz dela chamando-o.

"Hati"

Ele ouviu o nome ser dito, escutou a voz como se ela reverberasse dentro dele.
Imediatamente ele parou.
Era possível sentir o gosto seco e a combinação química da Lua na boca e mesmo assim ele parou e abaixou os olhos na direção da terra.

Mais precisamente para os desenhos geométricos que formavam um imenso labirinto.
Se fosse antes, ele iria até ela.
No entanto ele permaneceu parado. Sem saber o que fazer. Flutuando no espaço.
Ele não se moveu até o dia amanhecer.
Aquela foi a última vez que Hati foi visto perseguindo a Lua.

Dizem que ele trabalhou como a besta de Gevaudân durante alguns anos na França e que andou com Benjamin na Austrália, o último dos lobos da tasmânia. Dizem que durante algum tempo ele ficou sentando em um campo de trigo esperando por alguém que nunca viria. Até onde se sei ele desistiu da Lua e passou a viver como cão pastor.
Seus olhos mantiveram-se furiosos e tristes. Como se ele tivesse perdido algo importante.

Pietra ainda vive em seu labirinto. Ela as vezes pega-se olhando para o céu, sem sentir rancor... fascinada por toda aquela beleza alheia... as vezes ela até olhava para a Lua e quase compreendia o que seu amigo sentia.
Creio que um dia, com alguma sorte, o quase será removido de sua vida e ela irá transformar seu labirinto em um belo jardim.

Eles não viveram felizes para sempre.

Não que eu queira mastigar ou definir algo, mas aqui cabe a palavra

Fim.

Comentários

Filipe Ribeiro disse…
Brilhante construção de imagens... Parece alguma belíssima genealogia de uma civilização mais fraca que se mixigenou