Ariano


A mulher sentada na grande poltrona de couro negro não precisou aguardar mais do que cinco minutos. Ela estava chegando a meia idade, cabelos claros, organizados até pouco abaixo dos ombros. As roupas sóbrias, que a acompanharam durante toda sua carreira acadêmica e os saltos altos caros e impecáveis, deixavam evidente o apreço dela pela ordem e pontualidade.

Cinco minutos, as vezes, são muito para quem acredita ter todo o tempo do mundo nas mãos, contudo ela iria esperar. Precisava.
Ao ouvir os passos daquele homem magro que tinha recepcionado-a na entrada do prédio, a mulher limpou a garganta, não para gastar sua saliva e dialética com o aquele empregado, mas sim, com o patrão dele.

-Olá senadora. O senhor Enyalios espera a senhora agora em seu escritório. Pode me acompanhar por gentileza?

A voz do jovem era muito limpa e calma, quase tão fria quanto o ar gelado percorrendo o imenso prédio. Já passava das dezessete horas e o lugar estava silencioso. A ausência de outras vozes, sem dúvida, aumentava a sensação de frio.
A razão da visita da senadora e dela ter se dignado a esperar era bastante simples, pontualmente material. Dinheiro, polidamente chamado de doação, para a campanha eleitoral dela do próximo ano.
Não se faz política sem dinheiro.
Ela foi conduzida até altas portas de vidro enegrecido que abriram-se e depois fecharam-se diante da sua passagem, o rapaz não a acompanhou, aparentemente ele não estava a altura de tais interesses e discussões entre peixes graúdos e a senadora sentiu-se realmente grande por estar em local tão reservado e magnífico, grande e pequena ao mesmo tempo, ouvindo o solitário som de seus sapatos contra o piso de mármore negro.

Isso deve ter custado uma fortuna, ela pensava. Uma fortuna.
Ela imediatamente achou a vista, a partir do octogésimo andar, deslumbrante. Na sacada, logo após as imensas janelas de onde era possível ver quase toda a cidade, estava seu anfitrião. Aos olhos dele todas as cidades pareciam iguais como se fossem uma... a despeito de sentirem-se sempre tão únicas.... eram sempre iguais.
Ao notar a chegada de sua convidada, ele virou-se e voltou para dentro do escritório, chamando a senadora a tomar uma cadeira diante dele. Era um homem muito alto, vigoroso sobre cada aspecto possível, era fácil ver isso mesmo sob o Armani impecável que ele vestia.

- Senhor Enyalios é um prazer encontrá-lo... Enyalios é um nome grego?

- Sim senadora, é grego, significa Ares.

O timbre da voz era áspero. Enquanto respondia a pergunta, ele foi até um criado mudo, sobre o móvel existiam taças e algumas garrafas de diferentes bebidas. Ele não questionou se sua convidada desejava ou não algo, apenas encheu o próprio copo até a boca com vinho e um outro até a metade, oferecendo-o, em seguida, para a senadora.
Ao provar a bebida e sentir o prazer do gosto ela comentou surpresa a qualidade daquelas sensações.
-Divino esse vinho.

-Sem dúvida... Ele é realmente divino. Respondeu o homem, virando o próprio copo de uma vez para a garganta.
- Imagino que a senhora deseja tratar sobre o financiamento a sua campanha não é?... São tempos turbulentos esses os nossos não são? Tempos onde pode ser bom ter uma pessoa firme no controle do país. Diga-me senadora, o que senhora acha da guerra?

-Ora, eu sou contrária a ela, como qualquer pessoa sensata, e creio que ainda existe muito espaço não explorado para a negociação entre o nosso país e...

-Vocês sempre respondem com a mesma merda... Ele disse sorrindo, depois levantou-se, não parecendo importar-se com o choque imediato da senadora, virou-se para a janela e começou a falar, ciente que não seria interrompido.

Na voz e agora em cada palavra havia um rosnado, o som parecia encontrar alguma dificuldade em sair dos dentes cerrados.

- Sabe... Não acredito que exista humanidade sem guerra.
Eu tenho milhares de anos e nunca vi isso mudar. Desde antes do homem aprender a usar ferramentas ele já sabia fazer a guerra. Você, presumo, não compreende o quão humanas e necessárias são as guerras... não consegue ver como a natureza dela está entrelaçada com suas habilidosas mãos e dedos simiescos. Eu vejo. Não importa-me se é entre tribos, facções, etnias, cidades, países ou continentes, a guerra é uma força única. Eu sou.
Não consegue sentir a guerra no tecido das suas roupas, na manutenção do seu estilo de vida, na química em seus cabelos e perfume, na tecnologia de seu celular...Eu sinto.
Felizmente a pessoa que irá substituí-la em sua candidatura possui um ponto de vista diferente, não que a senhora represente um marco de dignidade, com o tempero certo você faria as mesmas coisas que ele, no entanto eu não desejo esperar.
Ele assumirá seu lugar, será eleito, financiado por um grupo de corporações que eu lidero. Durante pouco mais de um ano ele não fará nada além de vender armas para a maior quantidade possível de países e esperar alguém fazer alguma bobagem... antes eu costumava a planejar isso cuidadosamente, até perceber que é da natureza dos homens libertar o que não podem lidar. Quando algo acontecer e algo sempre acontece... seja um soldado morto em solo estrangeiro, um país aliado invadido, um golpe militar, um vaso de flores fora do lugar... não importa... quando acontecer, ele irá incitar o governo a ir para a guerra.

Nos dois anos seguintes, algum "paísquistão" qualquer do mundo, vai ser reduzido a cinzas. As armas vendidas previamente serão usadas por ambos os lados envolvidos na guerra, armas custam dinheiro, muito... e reconstruir o país posteriormente, para poder destruí-lo em alguma outra oportunidade, também consome dinheiro, muito. Nós vendemos as armas e nós vendemos a reconstrução.
Eu vendo a guerra.
Embora não deseje uma guerra eterna...se uma dor é perpétua as pessoas podem se incomodar com ela e decidir buscar a cura.
Guerras bem feitas devem obedecer a ciclos, elas devem ser apenas constantes e não intermináveis. Quando ela acabar, basta esperar uma nova começar e...

Subitamente Ares parou de falar, quando virou-se novamente para a senadora e viu que o veneno no vinho, uma cortesia eficiente e invisível de Pan, já havia surtido efeito. Falar sozinho não parecia lhe agradar. A senadora estava morta, só ele sabia o quanto sentia falta das antigas mortes. Aquelas que não precisavam parecer acidentes ou naturais...Como ele lamentava não ter as mãos em volta da garganta de alguém até os olhos da pessoa se tornarem vazios... como sentia falta de um pouco de sangue.
Era uma vergonha que o deus da guerra, o temido e passional Ares, agora tivesse que se contentar apenas com a estratégia e não mais com o ato. Porém os tempos mudaram, e a sobrevivência exigia adaptações.
Foi a habilidade de sobreviver, de fazer o que fosse necessário, que o manteve vivo enquanto os outros deuses definharam.
Até onde ele sabia apenas Pan e Pandora continuam vivos; o estúpido deus do prazer continuava intocável por razões compreensíveis em um mundo tão sedento e anestesiado por diversão. Como seria bom mata-lo divagava Ares.
Quanto a Pandora; a curiosa mulher que se tornou uma deusa. Como seria bom submetê-la a seu devido lugar pensava o deus da guerra. Ele gostava dela... da precisão sílica e pragmática por trás de cada pensamento daquela perfeição esculpida em diamantes.
Guerra, prazer e curiosidade... era razoável esperar que os três sobrevivessem no final, eles eram os mais próximos da humanidade.
Os mais humanos entre os deuses.

Ares bebeu mais um copo daquele delicioso vinho envenenado e apressou-se em sair, ele tinha outro encontro ainda hoje e nem precisaria trocar de roupa, não havia sequer uma mancha de sangue que justificasse isso... que desperdício rosnava consigo. Nem mesmo uma única bela mancha.
Ser uma divindade tornou-se tão complicado... se desejasse poderia fazer as coisas do modo antigo e espalhafatoso...com certeza pedaços daquela mulher estariam decorando o teto no modo antigo, porém, tornou-se necessário lidar com muitos fatores externos e incontroláveis. Com testemunhas, imprensa, familiares e outros interesses, além claro, do problema do livre arbítrio. Sua influência ainda era limitada.
Afinal de contas, ele não era deus...
Ao menos não por enquanto.


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Moacir Novaes

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