Deus está na chuva.



art by ~MisterKey


Os passos na calçada tinham um som diferente por causa das poças d`água, e existiam tantas espalhadas a cada metro, que era inevitável mesmo dentro do seu contínuo distanciamento, não pensar em como as coisas estariam nos pontos mais baixos da cidade. Ele sentia alguma compaixão gelada e uma certa culpa por aquelas pessoas, o infortúnio delas era um efeito colateral detestável da contínua tempestade, mas infelizmente, não seria por elas que a chuva iria parar.

Dez horas seguidas não pareciam o bastante.
Talvez chovesse até o mundo acabar, foi o que ele pensou, sentindo as rajadas de vento lutando com o seu guarda-chuva e que Deus o perdoe... mas havia algum alívio acompanhando tal idéia.
Seu nome é Michel, ele é um homem alto e magro, não chegou ainda aos trinta anos e não tem mais certeza se quer chegar, seus cabelos e olhos são, respectivamente, escuros e profundos, mas a despeito disso, tudo nele tendia a parecer invisível.
Durante a maior parte do tempo era como se ele não estivesse presente, você poderia olhar através dele sem notá-lo, e se for verdade que Deus está na chuva, Michel, conseguia não estar em lugar algum com assustadora freqüência. Havia uma gravidade triste, algo igualmente invisível, em volta da sua figura séria, como se carregasse consigo um peso qualquer ou como se ele estivesse deslocado, um corpo estranho em meio a um organismo absolutamente alienígena.
A ele parecia que só as chuvas lhe aconteciam.
Suas roupas e o casaco escuro tinham sempre os mesmos tons das nuvens e ofereciam razoável proteção contra o frio, a tempestade em si não o incomodava, a despeito de estar protegido e quase oculto pelo guarda-chuva preto, o tempo não era uma preocupação, ele iria continuar fechado isso era previsível.
O que ele não sabia, era se tinha acabado de constatar algo sobre o tempo ou sobre seu espírito, de qualquer modo, eles iriam continuar fechados.
Na mesma calçada, por onde Michel andava, havia um restaurante aberto. Ele passou pela porta de vidro pouco antes das dezesseis horas, tomou o cuidado de fechar o guarda chuva preto e longo antes de entrar, prendendo-o de modo minimamente organizado. O lugar era agradável aos olhos dele, não pela iluminação macia, ou por conta dos bancos acolchoados e das mesas de madeira brilhante, não por esses detalhes, mas porque estava vazio, a ausência de outras pessoas era decisiva para tornar o local agradável.
Dois garçons estavam atrás do balcão, um terceiro perto da mesa, uma quarta pessoa, na cozinha, o rádio baixo e indecifrável indicava isso. Os três homens do lado de fora olhavam para a televisão, imersos nos noticiários sobre a chuva torrencial que varria a cidade de ponta a ponta e nas dezenas de pontos de alagamentos que tinham paralisado transportes públicos, ruas e avenidas.
Michel, parecia imerso demais em seus pensamentos para notar as reportagens, ele levantou a mão para um dos garçons e quando o rapaz se aproximou, ele apontou para o cardápio mostrando dois itens desejados, um cálice de vinho tinto meio seco e uma salada com tomates secos, ele viu o garçom se afastar da mesa e depois, erguendo os olhos, percebeu as imagens na televisão... Tentava, diante delas, não sentir-se tão insensível quanto a soma de seus pensamentos insistia em ser.

Alguns pontos nunca mudavam naquelas cenas, os carros parados no meio da tempestade ou boiando nas avenidas, os deslizamentos, e sempre, invariavelmente um sofá vermelho... que por alguma razão misteriosa era filmado ao menos uma vez em cada enchente que ele já tinha visto... ou todas as casas tinham um sofá igual ou era o mesmo sofá em todas as inundações.
Ele sorriu no canto da boca diante de tal constatação, não estava feliz mas sorriu.
O que outras pessoas diriam se soubessem que tudo aquilo era responsabilidade dele? A resposta é que elas jamais acreditariam nesse absurdo e isso era ótimo, melhor assim, ele pensava. Michel sabia que tal afirmação, sobre sua responsabilidade diante da chuva, seria tratada como um evidente sinal de esquizofrenia, sendo um psicólogo, era sua função compreender que delírios de grandeza injustificados, como esse, eram um dos sinais claros de instabilidade psicológica.

Durante os primeiros anos, até perceber e compreender o que acontecia, ele achou realmente que havia perdido a sanidade. A pior parte nem era enlouquecer, mas sim, ter consciência do processo enquanto ele acontecia, sentir que o bom senso escapava entre seus dedos era algo terrivelmente angustiante.
Foram necessários anos até ele entender o que ocorria e ver um padrão. A primeira vez que a idéia lhe ocorreu, não o envolvia diretamente, foi em uma tarde de abril há dez anos, durante o enterro de seu avô paterno. Chovia muito leve enquanto as pessoas da família estavam em torno do corpo sepultando-o, aquela foi a primeira vez que ele viu seu pai chorar. Nos dias seguintes, choveu torrencialmente.
A segunda vez ocorreu cinco anos atrás, quando sua avó faleceu. Aquela foi a segunda e última vez que ele viu seu pai chorar. A cidade ficou parada por dias por causa das chuvas. Tudo o que ele teve que fazer, depois de estabelecer essa improvável ligação, foi imaginar se isso passaria de pai para filho e perceber que todas noites em que ele se sentia mais triste sempre precediam um longo dia de chuva. Invariavelmente.
Se um homem bomba podia dizer que explodia, Michel, pedia perdão a sua professora pois ele sem dúvida sentia-se capaz de afirmar que chovia.
Não derretia xícaras, nem andava sobre a água, ele apenas chovia.
Já estava anoitecendo quando ele decidiu ir embora do restaurante.
Parou pouco antes da porta, tirou o telefone do bolso e verificou se havia sinal... se existia alguma chamada perdida. Nada. Ela não tinha ligado, ainda e novamente, não tinha ligado. Ele sentia-se furioso por esperar alguém que nem mesmo sabia se iria chegar.

Coincidentemente, naquele preciso instante, algumas condições que seriam posteriormente chamadas de atípicas, formavam dois tornados em regiões do hemisfério onde eles simplesmente não deveriam ocorrer. Provavelmente foi apenas uma coincidência.

Sabe...O segredo sobre os monstros é que eles não desapareceram realmente.
Eles apenas não são mais visíveis.
Ao passar pela porta Michel abriu o guarda-chuva e ouviu o som da água batendo contra ele, ficou parado por alguns segundos em silêncio na calçada escutando, em seguida, fechou o guarda-chuva e deixou a tempestade cair sobre ele enquanto caminhava para casa. As pessoas que passavam por ele não achavam isso estranho, na verdade elas nem o notavam, estavam ocupadas demais correndo da chuva.
Pense, por um instante, em toda liberdade que a invisibilidade e chuva concedem.
Os passos na calçada tinham um som diferente... era quase como se não existissem.

Moacir Novaes

Comentários

Ariana disse…
Bem, acredito que o nome correto para a personagem seja Moacir.

Belo trabalho!
Feliz 2010! Saúde!Paz! Amor! (caso isso seja possível para você)

+)
Eu lembro quando me passou esse texto, então choveu até o mundo se acabar?
F.G. disse…
"Os montros não são mais visiveis...não por que não os vemos mas sim por que...eles não querem ser vistos..." assim dizia as palavras de um escritor...que conheço...ele é um desses "monstros"..um que sai do armário só para te pegar de surpresa..ou te arrastara para baixo da cama..rs..mas não,não se engane...ele nada tem a ver com o "bicho-papão"...ele é pior..bem pior..mas tem uma alma doce..q se enconde...mas um dia a verei..Não é "Meu Escritor"..
"Lindo texto...Parabéns!
Unknown disse…
Bgós, que coisa imensamente bela que você escreveu...