JekHyde

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Jekhyde


Zé: “Enfim liberto-me deste corpo que nunca poderá me oferecer coisa alguma. Pelo menos o Sr. Stevenson teve o bom senso de me colocar no corpo de um médico. Assim posso sentir a dor muito mais próxima, adentrando meus poros.


Moacir: Bem vindo ao mundo que te criou ou que criastes como mundo.


Zé: “É aqui que as pessoas vêm para viver? Antes de qualquer coisa, eu seria tentado a dizer que aqui se morre” (Rilke)


Moacir: Rilke!


Zé: Ah! Então conheces Rilke. Pois saiba meu caro duplo, “Nem muito cinismo, nem muita virtude. Não possuímos nem a energia do bem nem do mal. Conhece Dante? É mesmo? Que diabo! Então sabe que Dante admite anjos neutros na disputa entre Deus e Satã e coloca-os no limbo, uma espécie de vestíbulo do inferno. Estamos no vestíbulo, caro amigo.”


Moacir: Albert Camus!


Zé: Impossível manter um diálogo com você, esqueço que transita por todos os meus pensamentos. Todas as citações se diluem na unicidade que nos acorrenta.


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Geralmente essa sensação nasce de pequenos vislumbres espontâneos que deslocam meu ponto central de racionalidade a instantes onde qualquer vínculo com a lucidez é dissipado. Eu sinto-me então desorientado, sob minha pele existe algum tipo de animal, circulando entre meus músculos, contaminando meu sangue e rosnando em meus pensamentos... Mas isso acontece somente no início, após a total imersão do meu ser nesse pântano de sensações atordoantes, onde o instante precipitava-se num abismo que sugava qualquer indicação de temporalidade conhecida pela efemeridade humana, tornando-me infinito sob o incalculável peso dessa espessa sombra.
Você deveria ser grato por isso!
Grato por deixar de existir? Quando termino a minha travessia, ao abandonar essa pequena morte, minhas mãos têm uma força brutal e latente, todos os estímulos externos parecem chegar até meus sentidos dezenas de vezes ampliados. Mas a mais fabulosa mudança é a ausência absoluta de hesitação. Não compreendo, hesito sobre essa mínima linha racional.
Como alguém pode não ter dúvida sobre o que deve ser feito?
Como alguém pode ter dúvida sobre o que deve ser feito?
Eu não sinto qualquer dúvida, não há qualquer restrição...Não há consciência... ninguém poderia compreender o exato terror que é não ter um limite. Eu sou livre. Você é incontrolável... tem a mesma convicção cega encontrada em feras e tormentas.
Eu sou desperto. Todas as atitudes surgem plenas de encanto, elevadas a um estágio quase sacro, sobrepondo-se à estranheza e ineficácia do estado real. Eu sinto a apatia ao mundo supostamente colocado como paradigma a uma existência concretamente normal. Eu sinto...como é enfadonha a realidade deles, isso me afasta desses lugares onde tudo funciona de acordo com as regras do bom senso.

Isso me afasta do que já fui... Do que acreditava ser. Isso me afasta de você. Do espaço determinado e organizado da minha vida, da correção e cuidado... dos meus julgamentos e virtudes. Essa benevolência exata...agora parece não ter gosto algum, não é? Não há qualquer sabor ou densidade na dignidade.

Não há prazer em caminhar com anjos. Não há culpa em caminhar com demônios.
Eu preferia companhia deles. Preferia esquecer que divido continuamente o que sou e quem devo ser. Eu nunca estou sozinho, tenho essa outra vontade dentro de mim. Me guiando, me detendo.
Eu desejo ser detido. Os meus passos parecem se desenvolver numa firmeza nunca antes experimentada pelos pés. Eu quero parar...fugir. Mas prossigo...meus passos não se contêm em perderem-se onde a miséria se mostra tão clara quanto sufocante... Ela é real. Os becos fétidos com seu amontoado de mendigos fedorentos e seus cães sarnentos me enchem o peito de contentamento, dificultando esconder meu regozijo diante de tais imagens. Eles são reais. A violência das ruas me excita a tal ponto, que me embrenho ás costumeiras discussões de bêbados e contamino ainda mais os adjetivos proferidos das bocas desdentadas em direção ao seu oponente. Eu desejo ser real.
Alegra-me visualizar os crimes estampados nos cadernos policiais dos jornais imundos, imagino o ambiente todo repleto dos mais variados tons de vermelho, os gritos e gemidos ecoando pelas ruas cinzentas, espalhando por calçadas, portas e janelas... a dor em seu estado bruto.
Toda essa sujeira maciça, todo esse mal gratuito... Todos esses tons de vermelho, nas minhas roupas, nas minhas mãos, fazem-me sentir apenas mais imaculado.
Por vezes convenço-me que libertei o monstro que havia dentro de mim, apenas para sentir-me mais puro no dia seguinte. Uma pureza que só o outro lado é capaz de oferecer. Santificado, livre dos pecados aos quais o meu outro dedicava-se com tanta fome.
Essas lembranças de pureza que me são negadas por ter uma existência construída por outro ser que desconheço, são digeridas com toda sujeira do mundo, toda aquela que é produzida e negada. Rego essas lembranças com a mais pútrida água, reiterando minha aproximação ao que existe de mais perverso na construção do caráter humano.
Eu sou humano.
Tornar-me ciente que era igualmente capaz de transitar entre a compaixão e a fúria me fez finalmente ser humano.
Anseio pelo caos regendo as atitudes das pessoas, aguardo pelo dia em que todos s se odeiem mutuamente, isto não está longe de acontecer, percebi isso ao ver através dos olhos do meu duplo, o Dr. Jekyll, ao retirar da cabeça de uma criança um pequeno fragmento de chumbo, desferido da arma de um pai enlouquecido.
Meu odiado duplo, Mister Hyde, é o próprio futuro. Adaptado as mudanças, capaz de fazer o necessário para sobreviver a essa cidade que dia após dia parece mais monstruosa aos meus olhos. Com o tempo certo, imagino que o diminuto corpo dele se tornaria mais vigoroso do que o meu, muito mais forte. Revestindo-se com camadas de crueldade selvagem. Até finalmente me substituir, ocupando meus vazios organizados e simétricos, uma possibilidade que sempre desejei, mas que agora, diante da proximidade desse estágio aterroriza-me e me dilui sob sua sombra. Com o tempo certo imagino que os crimes do senhor Hyde serão vistos com natural tranqüilidade, tão comuns e aceitáveis como atravessar uma rua. Assim como é natural ver uma pessoa morar na rua e não nos importarmos com isso. Com o tempo certo ele será eu. Com o tempo todos serão sobreviventes como eu, adaptados ás suas próprias sombras.
Sinto-me quase traído. Eu o criei... Você não é nada sem mim. È uma cópia, um plágio de alguma parte obscura e pequena da minha alma. Um reflexo distorcido do que eu não devo ser... Eu o criei! E eu o libertei, eu tornei você real. Seria eu um mero plágio da sua existência? Cuja sombra vazia e amorfa necessita de outra já formatada para que se concretize o necessário preenchimento... assim como muitos textos que não possuem vida própria e nascem de outros já existentes. Apenas visando reverter a impossibilidade da força criadora, através de algo que não é um exercício de exposição mas sim de construção e diálogo. Eu não desejo falar com uma sombra. Como ouvi-la sem ser tragado... como olhar o abismo sem deitar-me nele? Sem aceita-lo....
Converse Comigo!
Eu não posso...Eu não devo... eu não vivo o eclipse da alma e no dia seguinte sinto-me inocente. Nós somos culpados...temos que ser, alguém afinal precisa ser.
Pois eu sinto-me completamente bem instalado dentro da maldade que em mim se configura como razão de ser, sei que todos possuem uma porção compatível com a minha, eles apenas a guardam ou a escondem na mais profunda caverna do ser, pronta para ser visitada a qualquer momento. Enquanto nós recebemos a alcunha de monstro/santo ao expor claramente a real identidade da nossa natureza, arremessando longe a máscara que constrói o dia-a-dia, notamos que não somos culpados. Que não podemos ser julgados.
Ninguém é, em absoluto, diferentes nós.
Vocês não são de forma alguma diferentes de nós.

Texto: Ninil Gonçalves(Zé) e Moacir Novaes


Preto: Zé
Vermelho: Moacir Novaes
Verde: Ambos



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Comentários

Moacir Novaes disse…
Prazer meu ter você como colega de escrita zé.

=) Honra minha.
Zé Raimundo disse…
Foi um grande momento para mim. Além de ter gostado bastante do texto, foi um enorme exercício de abdicação de questões subjetivas, que de certa forma ajuda a medir nossas vaidades. A honra é claro que é minha, caríssimo Moacir, pois sua escrita é belíssima e de uma profundidade abismal. Valeu e que isso se repita mais vezes.