Pequena Miss Sunshine

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Pequena Miss Sunshine


A relevância de “Pequena Miss Sunshine” para a recente cinematografia é incontestável, tanto pela versatilidade dos diretores em transformar um tema comum em uma ótima história, quanto pela aparentemente descompromissada investigação de uma família americana, algo que acaba se transformando em profunda análise de questões essenciais na vida moderna. O filme custou pouquíssimo para os padrões das produções americanas, mas conquistou até a horrenda academia de Hollywood, devido à magia que essa película possui.
O cinema independente americano ainda continua com fôlego para o bom cinema, aliás, o melhor cinema feito neste país onde tudo gira em torno de cifras gigantescas, mas que no fundo utiliza estes altos valores em prol dos blockbusters, onde efeitos especiais e histórias idiotas dão o tom ao mecanismo hollywoodiano, onde somente o retorno financeiro justifica a existência dos imensos estúdios. Talvez a diferença trazida por esse cinema independente, resida na simplicidade, ousadia e uma mentalidade que difere dos padrões estabelecidos. “Pequena Miss Sunshine” traz todos esses elementos, além disso, todo o filme é perpassado por uma poesia sutil e reconfortante.
Assistir a esse filme dentro da programação da TV, onde o teor qualitativo se aproxima mais do lixo do que de qualquer outra coisa, é caso raro, pois foi na TV aberta que o revi e num canal que prega veementemente todas as questões combatidas no filme.
O filme mostra a uma família de supostos desajustados, mas que aos poucos vamos encaixando as nossas no mesmo nível. Os personagens são diferenciados entre si, mas em nenhum momento estereotipados. Sob o ponto de vista de uma mãe que tenta resolver todas as questões da família, existe o filho adolescente que não quer falar com mais ninguém; o marido que dá palestras sobre como vencer na vida, mas no fundo também é um perdedor; o avô que foi expulso do asilo por usar drogas; o irmão gay que tentou se matar e por último a filha que está fora dos excludentes padrões de beleza e quer ser uma miss.
O filme começa mostrando um pouco de cada personagem, seu dia-a-dia e a dificuldade que existe na comunicação entre eles. Os únicos que possuem uma comunicação realmente positiva é a garotinha e o avô, que está a ensaiando para o concurso de miss. O primeiro sinal de que as coisas começarão a ficar sérias, é quando surge o assunto de que o irmão tentou se matar e a mãe não quer esconder isso da filha, o que deixa o pai furioso. Quando a menina fica sabendo que o tio quis se matar pelo amor de outro homem, ela dispara: “que ridículo!”, ao mesmo tempo que isso traz um alívio à família, mostra o quanto uma criança está ligada ao sentimento de viver.
A família segue numa velha Kombi para a participação da menina no concurso, a partir daí começa uma verdadeira invasão das mais variadas investigações sobre os valores humanos. O filme torna-se um road-movie divertido e poético. O problemas agora são expostos de modo mais breve e de acordo com a velocidade do veículo, parecendo até que a Kombi é a própria vida e os passageiros são os sentimentos e os elementos desse viver, e a Kombi vai seguindo aos trancos e barrancos, apresentando um problema a cada quilômetro, mas seguindo firme, um organismo vivo na estrada.
Aos poucos vamos sabendo que o irmão suicida é o maior especialista de Proust nos Estados Unidos e perde seu namorado para outro especialista em Proust; o filho que queria ser piloto, não poderá ser mais, porque é daltônico; o avô acaba morrendo na estrada; o marido não consegue finalizar um importante negócio; a filha descobre que misses não podem saborear sorvetes da mesma maneira que ela, devido ás imposições do padrões.
O final do filme é um tanto revelador sobre as questões ocorridas na Kombi-vida: A quase indiferença à morte do avô, o individualismo com que cada um segue com seus problemas e a obsessão pelos padrões sociais que o mundo vai colocando e estreitando nossos caminhos. As crianças que participam do concurso parecem bonecos, de tanta artificialidade, nem parecem mais adultos como desejam seus pais, mas sim bonecos à mercê de uma sociedade mais trivial e artificial possível.
Muitos momentos do filme são memoráveis, mas dois são meus favoritos: Quando o tio conversa com o sobrinho que agora voltou a falar e também a “ouvir”. O tio lhe fala sobre a vida de Proust, que era um doente quando a medicina tinha poucos recursos, era um homossexual quando isso era um grave crime e que escreveu um livro imenso que quase ninguém lerá, mas é um autor tão importante quanto Shakespeare. Proust “viveu” todos os seus sofrimentos e não recusou nenhum, pois assim como as coisas boas, eles complementam o que chamamos de vida e que talvez sem eles, nunca teria escrito “Em Busca do Tempo Perdido”, uma das obras fundamentais da literatura. O outro momento é a apresentação da menina, que para mim é uma grande cusparada na cara dessa sociedade que transforma seres inocentes com seus sentimentos verdadeiros em meros objetos de contemplação e orgulho por estarem inseridos nos padrões que definem o que é o modelo social, considerado correto e normal, no qual estão excluídos aqueles cujas inquietações os fazem buscar outros caminhos e aqueles que não se submetem à ditadura da imagem em prol de uma vida dedicada “ao outro” no sentido de ausência de si como definidor de valores.

Um grande filme que devidoà sua simplicidade, ás vezes não é levado tão a sério quanto deveria e acaba sendo visto superficialmente como apenas uma comédia legal. Na verdade ele traz além de todas estas questões, uma câmera que vai captando imagens belíssimas enquanto o automóvel vai rasgando a paisagem, sob um clima poético muito especial; além de uma trilha sonora linda que derrama-se sobre a estrada junto com a nossa Kombi-vida.


Ninil Gonçalves






Comentários

Moacir Novaes disse…
Adoro de fato quando vc faz textos assim. Vi o filme na mesma oportunidade, fiquei surpreso por ele passar na tv aberta. =) algum estagiário louco deve ter decidido passar.

gosto da forma como vc consegue tornar ainda mais atraente a experiência de livros, músicas e filmes zé.
Larissa disse…
Li alguns textos do blog e o acessei pela primeira vez ontem, achei mais oportuno comentar hoje.

Achei extremamente completo e diria até complexo para alguns, seu ponto de vista desse filme, o qual me chamou a atenção em diversas vezes, porém que nunca parei para assistir, ele está na minha lista de filmes a assistir e realmente, o cinema independente americano vêm se tornando cada vez mais atraente.