Olhos Negros

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Você deveria ter percebido que não era amada quando ele gritou pela primeira vez, terminando uma discussão de forma prática e estúpida, com dois palavrões direcionados não aos fatos, mas sim, à você.
Você deveria ter visto...como da última vez, em que ele te pediu desculpas, como se os gritos não tivessem vindo da boca dele.
No exato momento em que ele deixou de desculpar-se, porque não fazia mais qualquer diferença dizer algo a você.
Deveria ser capaz de ver todas as vezes que ele te fez chorar.
Todas as vezes que ele proibiu, minou ou privou sua vida.
Você poderia ter visto que aquilo não era sequer afeto.

Quando foi colocada ao lado de todos os vícios baratos ou caros, como uma distração, feito um objeto exótico.
Deveria ter visto, sentido.
Mas você estava longe demais para isso.
Perdida em algum ponto entre seu miolo e casca. Afastada do mundo, das janelas e portas.

Durante algum tempo... eu realmente amei você.
Se estivesse presente aqui talvez percebesse isso.
Mas você não estava, nem mesmo quando esse sentimento desapareceu.

Sentimentos bons fazem um som estranho quando quebram, quando morrem.
Diferente de ódio, rancor e fúria, que deixam de existir gritando com os olhos fechados.
Os bons, ao fragmentarem-se, emitem um som vazio, seco.
Contido, bem menor e com menos vida do que qualquer suspiro.
Eles deixam de existir calados, como se fossem enganos.
Esses sentimentos, que agora morrem em você, são velhos conhecidos meus, no entanto, eles já não tem peso ou profundidade. Tornaram-se tênues e dispersos.
Sem um corpo próprio ou propósito.
O silêncio deles ao desvanecer parece querer dizer em alto e bom tom.
"Nós nunca existimos"
...
Nas últimas três horas eu permaneci aqui, parado, esperando ser surpreendido.
Vendo você chorar e chorar.
Sei sobre todas as vezes em que quis desistir de tudo e nunca mais acordar.
Sei sobre todas as vezes que você ficou chorando pelos cantos sentido compaixão por suas próprias escolhas. Sei o que pensava ao deitar e ao acordar.
Sei porque procurava existir em você. Buscava amar. Compreender.

As fotos espalhadas no chão separaram definitivamente o que nunca esteve junto.
Os bilhetes e cartas, misturados como peças de quebra cabeças.
Antes do ponto sem volta, enquanto preparava-se para rasgar todo aquele amontoado de memórias, eu vi você parar, por um momento, enquanto passava a ponta dos dedos sobre as imagens e letras acumuladas você hesitou. Tentava alcançar aqueles dias e noites, capturados nas fotos.
Nessa passagem de segundos...
...Você desapareceu bem diante dos meus olhos negros.

As lágrimas cessaram.
Você permaneceu quinze ou vinte segundos tentando encontrar naquelas recordações, entre as imagens e textos, uma razão, um sentido ou propósito que tornasse seu passado real. Algo que explicasse os sorrisos nas fotos.
Subitamente pareceu perceber que todos, sem exceção, todos aqueles momentos foram criados e findaram-se baseados somente nas necessidades dele e nunca no que era melhor ou necessário a você.
Isso deixa um gosto amargo na boca.
Houve repulsa em afundar as mãos naquelas sensações. Isso foi bom...a dor, à semelhança do amor, é capaz de guiar uma pessoa.
A angústia lhe empurrou alguns passos adiante. Sabe...Quando as mãos dela começaram a rasgar aquelas memórias, não se ouviu eco.
Você poderia escutar, ela chorar e um ou outro anjo passar pela porta do quarto indo na direção da cozinha. Deixando-a.
Mas daquelas lembranças sendo destruídas não vinha nada. Nenhum ruído.

Ela sentiu-se terrivelmente culpada nesse ponto, por ser cúmplice na criação de uma ilusão.
Você deveria ter percebido que ele não amava.
Eu deveria ter percebido também não ser amado.

Porque apenas não veria algo tão claro se não desejasse ver.
Se não fosse capaz de ver.
Ou se amasse demais para ver.

Estranho... meus olhos estão ardendo.
Fazia tanto tempo que não sentia necessidade de chorar, eu nem me lembrava mais da sensação. Com um pouco de sorte, era porque amava demais... porque se não for isso, lamento, mas a história vai se repetir, repetir e repetir para nós dois.

Deixo o ar sair, em uma única respiração. Eu também nunca existi, não é?
Durante algum tempo. Eu amei você.
Se você estivesse presente aqui. Eu beijaria suas mãos e diria que tudo iria ficar bem.
Poderia ouvir o som de tudo que foi partido, quebrado e rasgado. E continuar ao seu lado. Mas eu não estou mais.

Digo com voz baixa... Como se realmente você fosse ouvir.
"Eu nunca existi..."
Você não me amava. Eu deveria ter percebido...
Um dos anjos vem até a porta me chamar para a cozinha, eles prepararam carne de porco e pão feito com grãos ao tempero de determinados pecados.
E sei que não vai compreender como é o aroma disso.
Eu deixo o quarto. Sentindo o perfume de ervas finas.
Eu deixo você.
Procurando não olhar para trás. Tentando me desvencilhar do que sinto.
Tentando lembrar de alguma música para cantar, enquanto fecho a porta atrás de mim.

"Perdida em seus sonhos e pensamentos...
Livre por apenas um momento.
Ela lembrava-me um blues de 1932.
Parada em um canto. Rodeada por santos.
Esperando uma vida para dois.
Sonhava sozinha e pensava por dois."

Moacir Novaes.

Comentários

Ninil Gonçalves disse…
"...Na frente do cortejo
O meu beijo
Forte como o aço
Meu abraço
São poços de petróleo
A luz negra dos seus olhos
Lágrimas negras caem, saem, dóem..." Jorge Mautner
Se eu colhesse essa dor , saberia que é sua?
poesiasdepoesias@blogspot.com disse…
Interessante, verdadeiro, mas muito triste...
Adorei...


Flor de Sombras