O Dom da Invisibilidade.

photo by Yueproduction



Seu nome é Clara, mas não se preocupe em memorizar isso, você logo irá esquecê-la.
Desculpe, não estou subestimando sua capacidade de guardar informações, mas compreenda...você irá esquecê-la. Não terá um rosto para se lembrar, cor do cabelo ou pele.
Não haverá um perfume que, anos mais tarde, faça você sentir a presença dela.
Expresso isso com certeza, não baseado em sua percepção sinestésica da realidade, mas pelo simples fato de Clara ter o dom da invisibilidade.
Tal atributo fantástico não surgiu repentinamente, a invisibilidade em torno da figura de Clara aconteceu gradualmente, ela desvaneceu aos poucos.
Primeiro aos olhos de sua família quando deixou de ser como eles a viam, especificamente, no momento em que confessou aos seus pais que amava uma das amigas do colégio onde estudava. Nesse segundo exato e verdadeiro, ela desfez a imagem que eles tinham dela. Semanas mais tarde, quando ela foi levada para outra cidade para poder tirar aquelas “bobagens adolescentes” da cabeça, Clara começou efetivamente a desaparecer e logo aprendeu que a invisibilidade estava intimamente ligada ao ato de deixar de ser.
Ela nunca mais comentou sobre seus gostos, não que eles não existissem, ela ainda tinha uma cor favorita, uma comida mais saborosa do que as outras, um lugar especial e sensações que desejava provar... no entanto, ela nunca mais falou sobre isso com alguém.
O silêncio era essencial para não estar mais presente e para manter a intangibilidade com a qual passou a lidar com o mundo a sua volta. Havia uma lógica sensata nessa escolha, no deixar de existir, pois o mundo simplesmente não consegue atingir o que não é capaz de enxergar.
Clara tornou-se intocável, intangível e finalmente invisível.
Não posso dizer que este foi um processo fácil, embora pareça uma decisão simples, ele envolveu sacrifício e desapego. Ela deixou de se importar.
Ela deixou de ser amada.
Ela deixou de ser.
Ela deixou.
Até sobrar somente ela, e quando sua essência pareceu concentrar-se no mínimo possível, Clara prosseguiu e livrou-se de outros tantos adornos e camadas, até não restar sequer o ela.
Hoje ela tem vinte e sete anos.
Vestida com tons escuros e combinações monocromáticas, protegida atrás dos óculos de armação transparente e ouvindo apenas os sons das músicas em seus fones, ela está sempre em uma parte diferente da cidade...ou as vezes entre cidades, como se vivesse entre lugares no espaço vazio do chegar ao partir.
Os anos que passou calada a tornaram uma excelente observadora.
Clara ganha a vida como fotógrafa, sua técnica é brilhante e mesmo que os críticos nunca a tenham visto pessoalmente eles sempre tecem longas análises sobre o modo como ela consegue capturar cada imagem de modo intimista e preciso.
Para eles há a presença de uma técnica absoluta quando Clara condensa outras pessoas através das suas lentes, nas palavras deles, é quase como se a fotógrafa fosse invisível, como se as pessoas não percebessem que ela estava ali, na frente delas, fazendo as fotos.
Olhando direto para as almas deles, com as mãos sempre muito firmes.
Clara não demonstrava envolvimento com as imagens que capturava. Não sentia, apenas testemunhava com calma o que via.
Como se não estivesse realmente ali.
...
Pensando sobre isso... as vezes tenho a desconfortável sensação que não foi Clara que se tornou invisível, mas sim, fomos nós que sumimos aos olhos dela.

Comentários

Criticador disse…
Você tem O Dom da Invisibilidade!
E também não responde e-mail!
Quero falar com você, Moa.
Abs
Danilo
PS: muito bom o texto!