Boa mañana


art by ~flappybat


Ainda não amanheceu.
Está frio, não muito.
Existe um nevoeiro que progressivamente parece perder densidade.
Nesse preciso momento caminhar é como andar entre as nuvens.

Existem as roupas negras que uso, o capuz pesado cobrindo boa parte do meu rosto, protegendo meus olhos para que eu nunca veja o mal.

Existe uma beleza triste. Não causada por ou a partir de sentimentos.
Ela começa etérea quando uma onda de vento dobra-se a partir daquele céu e passa por mim, infiltrando-se.
Amplia-se no som do ar contra o tecido, que cede e tenta acompanhar o oxigênio.

É a liberdade implícita no vento que faz o meu cachecol cinza serpentear.
O cachecol que até esse instante era invisível para você e que agora, ao ser mencionado, assume forma e textura. O mesmo que não existia antes e que repentinamente tornou-se real.
Imagino... Quantas outras coisas ainda não se tornaram reais para você?
E são assim apenas porque você não leu sobre elas.
Não as viu.
Não ouviu
Não sentiu.

Agora que você é parte de mim e que caminhamos através da madrugada até aqui, permita-me mostrar o mundo que vejo através dos meus olhos.
Está amanhecendo, o vento partiu levando com ele metade das minhas recordações.
O nevoeiro foi desfeito, dividido até desaparecer.
Algumas pessoas passam por mim, preparando-se para começar a viver.
Eu queria começar também.

Nessas horas eu quase paro essas pessoas na rua e peço para me levaram junto, seja lá onde a vida estiver.
Existe o som dos carros, vozes e algo abaixo desses primeiros tons, algo contínuo como um murmúrio parecido com aquele que o mar causa ao ir e vir.
Eu não consigo mais ouvir meu coração, nem meus passos.

O céu está mais claro, muito bonito ao menos para os padrões da minha espécie.
Azul que mistura-se com violeta, púrpura, rosa e o branco aquarelado das nuvens.

O Sol e a claridade sem calor que vai espalhando-se por todas as partes.
É estranho.

Por alguma razão incompreensível, exatamente durante essa passagem eu penso em como é bom estar vivo e ver tudo isso acontecer.
Penso comigo... Como gostaria e como ainda acredito que dias melhores virão. Penso nas poucas pessoas que amo intensamente e sinto vontade de que sejam muitas um dia.

Puxo o cachecol, removendo-o do meu rosto e pescoço.
Depois o capuz, quando ergo meus olhos na direção do Sol.

Ele não me cega. É um dia bonito e novo.

Passo pela porta de casa e logo em seguida a passagem lembro de trancá-la. Passo por outras portas que são igualmente trancadas.
Penso em abrir a janela e olhar o céu mais uma vez, mas amanheceu, já está tarde e eu desejo dormir agora.

Sonhar um pouco. Só por agora.




Moacir Novaes

Comentários