
art by ~neonchosis
Eu já a conhecia.
Estávamos passando daquela fase que vai de conhecidos à amigos. A maior parte dos relacionamentos entre as pessoas não sobrevive a esse passo, talvez aqui eu deva explicar a diferença entre conhecer e ser amigo de alguém, apenas para o caso desta não ser clara ou se por ventura você ainda não tenha compreendido que são dois mundos distintos. Conhecido é alguém que fica ao seu lado por pensar o que você pode fazer por ele. Amigo é alguém que fica ao seu lado por pensar o que ele pode fazer por você.
O amor, muitas vezes, segue regras semelhantes. A diferença assassina entre esses dois sentimentos, é que a amizade precisa ser correspondida para continuar existindo.
O amor não.
Eu já a conhecia.
Nós iríamos sair aquela noite, ir até um dos muitos clubes noturnos existentes em minha cidade. Um dos maravilhosos, não recomendáveis e relativamente interessantes pequenos infernos espalhados nas ruas. Ela; e eu sei que esse "ela" tem por função construir o mito, havia terminado de se arrumar. Os últimos detalhes da roupa negra que usaria durante aquela noite estavam sendo ajustados. Lembro dela me perguntar o que eu achava do resultado final. Se ela estava bonita.Em uma relação aproximada foi como o Sol perguntar... Eu brilho? Sente meu calor?
Respondi que sim; sem emoção aparente, sim ela estava muito bonita. Já havia dito isso algumas outras vezes para algumas outras pessoas e sabia que apenas a afirmação curta e simples já bastava desde que fosse verdade. Faltavam somente alguns pontos, como a maquiagem que deveria ser mais escura. Ela fez sozinha uma primeira tentativa em tons vermelhos para a boca e negros para os olhos, mas ainda não era escuro o suficiente, nunca é o bastante.
Me ofereci para ajudá-la. Ela estava de pé diante de mim, com a boca entreaberta. O tom dos lábios precisava ser mais escuro. Eu iria retocar sua maquiagem e batom. Sim, eu sei fazer isso.
Não me pergunte como aprendi, é uma longa história.
A sombra nos olhos deveria ter um toque mais forte. Já a boca precisava ter a cor de sangue frio e denso, com bordas quase negras, sutilmente desenhadas ressaltando o contorno dos lábios.
Ela precisava ser outra pessoa.Adquirir a opressora beleza das sombras.
Não desaparecer, mas sim, tornar-se um eclipse.
Como se houvesse um véu negro de seda diante de seu corpo, à frente da alma.
Uma barreira que ao ser removida libertaria a luminosidade contida e que, pelo simples fato de existir, tornava o brilho oculto em minha amiga ainda mais cintilante.
Quando ela dançava era assim, envolta em véus, a imagem por si apenas era linda. Como se houvessem correntes de água e ar circundando o corpo dela. Girando sem descanso.
Guardando seus olhos.
Foi nessa fração de tempo, enquanto diluía o pigmento vermelho carmim sobre a boca dela que algo aconteceu. O mito lembra?
O instante precioso onde você pode sentir o tempo congelar e sua alma ser devorada, despedaçada, separada em nível atômico para então refazer-se nova.Desperta.
E isso atinge você, como um momento de revelação, o exato segundo onde a caixa de Pandora é aberta e o mundo tornar-se um lugar melhor.
Eu já a conhecia.
Quando ela começou a falar diante de mim, percebi que era não conseguia me mover ou desviar o olhar.
Não sei se pela simples presença dela a um palmo de mim.
Se pelo perfume do seu corpo infiltrando-se no oxigênio que vertia para meu sangue ou se por conta dos olhos. Os mesmos olhos que ela já odiou tanto ter...que tantas vezes antes tinham barrado a entrada de sua alma. Reduzindo-a à uma miragem, impedindo minha amiga de ser uma pessoa.
Com necessidades, sentimentos e fraquezas humanas.
Eram esses mesmos olhos que me prenderam. Por serem tão diferentes dos meus.
Então... esse era o sentido da palavra fascínio.
Então é isso o que se sente.
Alguma pergunta foi feita por ela. Algo ligado ao contexto anterior de nossa conversa.
Lembro que houve um longo silêncio da minha parte, até que eu percebesse o que estava ocorrendo, como eu estava longe e próximo.
Levou algum tempo para voltar. Para me desvencilhar.
Isso era então o fascínio.
Sem saber o que dizer, distanciei a mão que terminava de contornar a boca dela com batom. Dando a entender que tinha terminado. Ela estava sorrindo. Terminamos de nós arrumar.
Lembro das músicas que tocaram aquela noite.
Lembro de ter bebido um pouco, de conversar um pouco, deixando a fumaça de cigarros nublar minha visão.
Mas essencialmente e acima de qualquer uma das outras impressões e lembranças que tornaram-se posteriormente superficiais, eu lembro de vê-la dançar.
Como a lua dança, movendo-se no céu. Com as nuvens como véus.
Ondulando feito serpentes.
Nada poderia se mover de uma forma tão misteriosa.
Não como ela fazia.
Movendo-se como o mar.
Girando, avançando e recuando.
Movendo-me.
Acho que por isso, sempre que vejo a lua eu me lembro dela.
E eu pensei que a conhecia.
A lua negra.
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