Sister Cylla.


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Sabe o que dizem sobre o frio na boca do estômago? Isso não funcionava mais, ela não sentia medo e não sabia se isso era bom ou ruim. Cylla nunca mais sentiu medo, não em um palco, não enquanto estivesse com a guitarra nas mãos. Sob essas condições ela era irresistível, mesmo as leis químicas, físicas e matemáticas curvavam-se diante dela.
A lógica, de bom grado, cedia lugar para a música.

Sexta corda, quarta corda, terceira corda, segunda corda... O ritmo era esse, ela chamava o instrumento de Blue Lotus, sim, ele tinha nome e sobrenome. Ele era a “Lucille” dela.
Azul escuro e brilhante, com tantas inscrições e sinais quanto as tatuagens no corpo esguio de sua dona, se os outros músicos tinham suas garotas, Cylla tinha seu Blue, seu mito impossível e particular.

Ele não a deixava mais sentir medo.

Cylla só não sabia se isso era bom ou ruim... As vezes ela sequer sabia se era mesmo a dona daquele magnético conjunto de cordas e madeira.
O inverso dessa ideia ainda a assombrava, como uma dívida incomoda um bom pagador, fazia a garota pensar sobre suas contas.

Cada vez que tirava a guitarra do estojo negro ela sempre imaginava quando seria cobrada.

Frequentemente usava parte do seu tempo, tentando entender, quem estava tocando quem.

Essas perguntas desapareciam apenas quando ela estava ali, no palco. Cylla caminhou até o centro dele, essa era a parte do show onde os membros da banda saiam, nos próximos minutos tudo o que havia era um faixo de luz, das costas de Cylla para a plateia.
O som da música dela e depois os aplausos.

Ver as cordas não era necessário, nunca tinha sido desde o começo.
A contraluz moldava a silhueta de Cylla e da sua guitarra, como uma sombra única.

Os cabelos pretos curtos, a postura angular e o instrumento, mesclavam-se, criando algum tipo de quimera sonora perfeitamente adaptada ao palco. Os dois objetos ali presentes eram indivisíveis.
Havia a voz dela conversando com Blue em tom de confidência, provocando-o a repetir cada possível nota já criada pelo homem.
Curiosamente, nem sempre a simbiose entre os dois foi afinada assim...
Até completar seus dezenove anos ela estudou todos os dias para domar a técnica e, mesmo assim, Cylla lutava com o violão. Faltava algo e não falo somente do público, esse não existia nunca, sua ausência era tão comum que a garota não se incomodava mais com isso.
Não era importante, ela nunca quis os aplausos, queria era ter mais alma.
Cylla tocava, mas não sentia e sendo prático, fantasmas não sabem fazer um bom blues.


Um ano atrás isso tudo mudou.
Imagino que esse tipo de necessidade nata do blues, sua fome constante por almas, foi o fator que atraiu ele para a equação, por ele, me refiro a única testemunha de uma das mais melancólicas apresentações de Cylla... Durante uma terça-feira chuvosa e fria em um bar vazio na cidade.

Era um homem alto em um terno azul escuro, com um cavanhaque impecável e cabelos meticulosamente presos, ao seu lado, encostado na mesa havia um estojo de guitarra fechado.
Ele passou por três musicas sem expressar qualquer reação, tudo o que fazia era esporadicamente beber um pouco da vodka amarga no copo e olhar com um ar de repreensão, antes do final da quarta música Cylla parou e perguntou:
“Certo... Qual o problema, se não está gostando eu posso parar.”
“Desculpe. Eu nem notei que você tinha começado.” Não foi a frase em si, mas a forma irônica de rir no canto da boca, ele sorria como quem sabe algum segredo, creio que foi isso que prendeu a atenção de Cylla e a impediu de mandar seu público solo para o inferno.
“Ok... Carrega algo dentro do estojo ou só usa ele para impressionar as mocinhas? Se não é só enfeite, me mostre se consegue fazer melhor.”
O homem sorriu. Ele pegou o estojo pela alça e caminhou até o palco sem subir nele, puxou uma cadeira de uma das infindáveis mesas vazias.
Sentou-se.
Depois, sem pressa, pegou uma guitarra de seis cordas de dentro do estojo e nos vinte minutos seguintes tocou como o diabo em pessoa.
Cylla estava chorando quando ele terminou, a primeira coisa que ela perguntou foi “Como?'” e quando ele explicou como a segunda coisa que ela perguntou foi “Onde eu tenho que assinar?”
Não havia papel ou tinta, porém, depois que o contrato foi fechado entre os dois, o homem levantou-se e começou caminhar para a saída. Estava chovendo torrencialmente, mas ele parecia não se importar, só quando aquele senhor estava chegando a porta é que Cylla notou que ele tinha deixado seu instrumento encostado no palco.
“Ei... ! Sua guitarra.”

“Não.
Agora é sua guitarra, é um bônus do contrato.”
Foi assim que ela ganhou o Blue Lotus.

Ninguém jamais perguntou como, da noite para o dia, Cylla tinha se tornado uma diva.
O comum dela, em cada uma das apresentações, era fazer o impossível.
O normal de Cylla era o inalcançável do restante da humanidade.

As pessoas reunidas diante dela hoje não tinham interesse em fazer quaisquer perguntas, a perfeição por si bastava.
Eram essas mesmas pessoas que pagavam o salário da banda e por todos os luxos pequenos e caros de Cylla, do chá gelado sempre presente no camarim aos diamantes.
Nenhum deles poderia reclamar dessa troca, eles presenciavam um show singular... Talvez e somente talvez, questionassem o valor da entrada se descobrissem o teor das entrelinhas e das letras miúdas aceitas por Cylla anos atrás em seu contrato.
Ela perguntou uma única vez para aquele homem sobre o que teria que dar em troca, afinal, ela tinha um medo justificável de perder exatamente o que andava procurando em seu blues... A alma.
Ele a ouviu pacientemente, como se essa fosse uma questão frequente, então disse que ela não precisava se preocupar.

“Tudo o que eu quero em troca é que você toque sua guitarra. Use sua música para fazer as pessoas lembrarem que ainda tem uma alma... Eu só posso tirar algo delas se elas lembrarem que ainda tem algo para perder.

Então garota... Só toque esse maldito blues.”


Parecia uma boa troca.
Algumas vezes ela lembrava ter um segredo e uma dívida, especialmente quando olhava para a público e tinha a nítida impressão de ver aquele mesmo homem, sentado entre as pessoas, sempre quando ela tocava Miss Celie's Blues.
Ela podia jurar que ele estava lá, cantando baixinho...

"Sister, you've been on my mind
Sister, we're two of a kind
So sister, I'm keepin' my eye on you..."

Moacir Novaes

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