Consciente Coletivo

art by ~Sixo

Recentemente um acidente aéreo vitimou duzentas pessoas em nosso país.
A primeira frase desse texto contém duas palavras que resumem tudo o que precisaria ser dito.

Duzentas pessoas. Espero que a quantidade numérica, tão impessoal, não seja uma barreira para que você se lembre que cada uma dessas vítimas tinha um nome e uma vida.
Cada uma delas tinha uma história.
Histórias que não existiam isoladas e exatamente por isso, ao desaparecer, afetaram outras pessoas, mudaram outras vidas através de uma cadeia intrincada de laços invisíveis, que nesse exato momento finalmente alcançou você.

Porque, em última instância, você está aqui.
Lendo isto e pensando, onde exatamente é seu lugar em toda essa história.
Bem...dizem que um desastre não é obra do acaso, mas sim, a soma de muitas escolhas e erros acumulados. Uma rede de eventos contínua, que tem como ponto máximo um acidente fatal.
Diante dessa ferida, que é aberta inesperadamente, é natural tentar identificar os culpados.

Porque segundo nossa lógica, culpados sempre devem existir.
Qualquer evento dessa magnitude não pode simplesmente acontecer por acontecer.
Nós sabemos disso, nossa espécie sabe intuitivamente que tem que existir uma origem, um culpado, vivo ou morto. Não trata-se de um terremoto.
Precisa haver uma razão, um responsável. Alguém que tomou a decisão crucial, que fez a escolha errada, um indivíduo que possa ser acusado pelo ato e por suas consequências, buscamos isto com tanto afinco, com tamanho apetite pela punição que terminamos por esquecer a origem dos eventos, o ponto inicial onde tudo começou. Permita-me ajudar na localização desse ponto e do culpado em questão.
Sim... realmente existe alguém a ser culpado.

A bem da verdade; se desejar realmente ver essa pessoa, o mais recomendável para você seria interromper a leitura, levantar-se e procurar um espelho.

Qualquer espelho.
Pode ser o carregado na bolsa, aquele no banheiro do escritório ou em casa, ao localizá-lo, olhe para a imagem refletida e então será possível ver a pessoa culpada por aquelas duzentas mortes e por mais uma considerável quantidade de fatos.
Nós somos os culpados.

Antes que pergunte.
Não trata-se do que você fez, se até aqui ainda não entendeu isso... Trata-se daquilo que todos nós não fizemos.

Trata-se do que nós deixamos e abandonamos pelo caminho, daquilo que fingimos não ver ou que esquecemos em algum lugar de nosso passado, indo ao ponto, a humanidade parece ter desistido do conceito que originalmente a definia. O coletivo.

Passamos, intencionalmente, a ignorar a forma como nossas ações individuais interferem e alteram a realidade de todos; e ao esquecermos a força de nossos atos isolados e o eco causado por eles, perdemos nossa humanidade. Ao negarmos nossa ligação e a responsabilidade, com as demais partes do coletivo, perdemos aquilo que nos tornava mais humanos.
Somos culpados. No plural dos fatos.
Não por convicção em fazer o mal, mas por permiti-lo.
Por omissão em não tentar detê-lo.

Creio que dessa omissão vem parte do fascínio que sentimos em relação aos vilões existentes em livros e filmes. Olhamos com tanta atenção seus atos porque o mal deles é intencional. Enquanto o nosso, é gerado, mantido e propagado por simples omissão. O mal deles é fácil de ver, classificar e acusar. O nosso está invisível abaixo das camadas da alma, mantendo-se indiferente e tranquilo.

Evidentemente você pode discordar do que está sendo dito, dessa afirmação cruel, não é?
Pode parar agora e não continuar lendo.
É uma escolha como tantas outras. Por que seria sua culpa?
Por que afinal seria sua culpa se um garoto é arrastado por um carro durante quatro quilômetros depois de um assalto? Não era você segurando a arma, nem era você dirigindo.

Não é sua culpa quando um senador escolhe favorecer uma determinada empresa visando ganhos pessoais e causas próprias ao invés do interesse público. Você nem mesmo tocou no dinheiro. Você nem mesmo votou nele. Você nem votou.
Não são sua culpa as centenas de mortes anônimas que não chegam aos jornais e ocorrem todos os meses em roubos, por armas ilegais e tráfico.
Não é sua responsabilidade quando pessoas morrem em deslizamentos pontualmente ano após ano.
O horror resultante de décadas de descaso com educação e direitos sociais básicos não foi causado por você.
Não é sua culpa o deficiente atendimento hospitalar público, você tem seu plano de saúde privado.

Não é sua culpa que todos os dias milhões de pessoas andem esmagadas no transporte público, todos os dias nas últimas décadas. Você tem seu carro.
Não são sua culpa as milhares de mortes no trânsito, você anda a pé.
Você acredita que não tem qualquer culpa sobre o caos no sistema aeroviário, afinal, nem mesmo utiliza avião. Você tem o seu ônibus e metrô lotados, como você poderia ser culpado se nem mesmo entrou em um aeroporto?
Por que seria sua culpa uma obra pública como um túnel do metrô virar uma cratera gigante? Você nem mesmo anda de metrô...Você usa outra linha, outra rota, outra rua, outra cidade. Você não mora naquela região, você tem seu carro, você anda de avião, você não conhecia aquelas pessoas.

Não pode ser culpa sua a morte delas, nem mesmo as outras mortes que precederam ou aquelas que irão ainda acontecer. Você nem mesmo as conhecia.

Como pode culpar-se?
Não sabia que cada uma delas tinha um nome, uma vida e uma história. Não sabia ou não desejava saber.
Porque se elas tivessem nome então seriam parecidas com você.
Se tivesse uma vida, uma história seria diferente. Se fossem seus filhos, seus pais, seus amigos, então talvez, você pudesse sentir parte da dor delas.
Como pode ser sua culpa o que acontece na vida de um desconhecido?
Você não estava lá. Não foi com você. Não é sua dor.

Não mesmo?

Gostaria de acreditar que não é necessário continuar.
Imagino que em um mundo ideal não seria preciso dizer que:

Sim, nós somos culpados quando propositalmente deixamos de ver o que está errado.

Quando nos calamos.
Quando aceitamos por medo ou comodidade que outras pessoas sofram... Nós somos culpados.

Cada pessoa que aceita sem questionar aquilo que parece, está ou começou errado.
Cada representante público eleito e cada eleitor, por não pensar sobre como uma vida perdida não pode ser restituída, por não lembrar do peso de suas próprias decisões, por não considerar o fator humano e fundamentalmente por não sentir-se manchado por esse ciclo de mortes.
Cada membro e formador da opinião pública, por se banquetear com essa dor e depois esquecê-la, substituí-la por uma nova dor ainda maior.
Eu sou culpado por só escrever isso agora.
Você, tem culpa de só pensar nisso agora.
Nós todos somos cúmplices silenciosos. Nós todos de forma coletiva.

Perceber isso talvez seja o primeiro passo para mudar.

Ter compaixão é, na origem da palavra, ter a capacidade de dividir os sentimentos de outra pessoa. Compreender sua dor por afinidade ou por perceber-se passível de vivenciar as mesmas sensações.
Para alcançar essa compreensão é necessário admitir que você não é o único que sente e que outras pessoas podem ter os mesmos desejos, anseios e medos seus. Isso nos liga.
Isso nos define como espécie e como coletivo.
Isso nos torna responsáveis uns pelos outros a cada vez que decidimos agir ou permanecer omissos.

Parece claro que não devemos nos portar como um rebanho único e sem cérebro, mas também, não temos mais o direito de viver enclausurados em nossos mundos isolados e ilusórios.
Construídos e mantidos a nossa imagem e semelhança.
Longe de qualquer dor alheia e alheios a tudo que nos rodeia.
Moldados fragilmente.
Vazios, como bolhas de sabão.

Não vivemos só para nós mesmos. Simples e direto.

Havia dito que a primeira frase desse texto contém tudo o que precisaria ser dito e nela está escrito.
"Nosso país".

Não precisamos viver ou permanecer como cúmplices, é uma questão de escolha, de não esquecer.
Nossa culpa. Nossa responsabilidade.
Nosso país.


Julho/07.
P.S. Quando um texto assim vai finalmente deixar de ser atual?

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