Deus ex Machina


art by ~KissMyShades

Eu deveria colocar a data e o lugar onde estou aqui.
Mas eu não sei se a informação é relevante.
Mesmo que você leia isso daqui a um, dez ou cem anos ou milhões de anos.
Espero ainda ser compreensível e atual...
Porque
atualmente
E
u compreensivelmente
Me preocupo apenas com o presente.


Meu nome é Ismael.
Mas eu não tenho nada contra nenhum cachalote branco.
Não saio por ai caçando baleias.
Gosto delas... A despeito destas não me parecerem ter uma utilidade prática.
Gosto, mesmo daquelas que são usadas como metáforas.
Gosto e não me reviro ao sabor delas.

Nada contra quem acha normal fazê-las de sopa.
Só acho a ideia um desperdício.
Como derrubar o monte Everest para fazer tijolos.
Amazônia para fazer fósforos.
A alma para fazer poesia.

Pensando nisso... É possível imaginar que a natureza de muitas pessoas é essa.
Transformar montanhas em bloquinhos.
Baleias em sopa.
Vida em existência, manteiga em margarina diet.

Não trata-se de simplificar somente, mas sim, reduzir tudo.
Até tudo poder ser controlado e digerido.
Até a essência, normalmente bem maior e mais forte do que a nossa, ser perdida ou diluída e tornar-se assim tragável.
Consumível.

E creio que é por isso que não gosto de sopa de baleia e nem de pessoas, mas claro, peço que não tome isso como algo pessoal...
Afinal.
Você não é uma pessoa, mesmo tendo feito eles a sua imagem e semelhança.

Diga-me... Você gostava de carne de baleia?
Era esse o projeto que tinha para elas quando as criou?
Servi-las em tiras.. Fritas ou assadas.
Por isso tinham que ser bem grandes, macias e rosadas.
Para ficar bem cozidas como batatas coradas?

Essa dúvida me ocorreu nos últimos segundos e não acho que terei a resposta para ela, não mais do que tive para as outras perguntas.
Estou sendo mais sincero do que irônico.
Acredite.

Bem mais Ismael do que demônio.
Me chamo Ismael, mas acho que isso já foi dito.
O que não mencionei ainda é o motivo dessa carta.
Eu estou deixando a humanidade hoje e gostaria de formalizar a decisão.
Não trata-se de explicar, já que o abandonar implica em não importar-se com maiores razões ou justificativas, quero apenas deixar isso claro e bem documentado.


Dessa forma, poderá ser transparente que essa foi uma decisão consciente.
Quase... Onisciente.
Como as suas.
Lembra-se? A imagem e semelhança...

Quando eu passar pela porta e sair não poderei mais dizer isso, melhor aproveitar agora e gabar-me do parentesco.
Bom momento também para deixar claro que a decisão não tem nada a ver com você.
Como dizem... “Não é você... Sou eu.”
Ou talvez sejam eles...
Mas o fato é que eu estou indo, estou fora. Lamento.


Desisto da minha espécie. Abro mão.
Desisto de toda pretensão.
De ser mais do que um macaco sem pelos e com curiosos hábitos.
Desisto das guerras em moto perpétuo. Desisto da paz como ideal utópico.
Desisto de ser medido por aquilo que posso comprar ou por aquilo que não posso ter.
Desisto dos dogmas, das religiões, desisto de tentar ver algum sentido nesse circo.
Desisto, sem dor no coração, aquele ao qual também abnego.

Pode me classificar, se desejar, como mineral ou como vegetal.
Como vírus ou anfíbio.
Como elemento alquímico.
Não importa.
Mas não me chame de humano.

Não mais como humano.
Porque.
Eu.
Desisto.
Des existo.
Deus existo.

Deus ex Machina.



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