Mika


art by ~aROCKchick




Senhor Mika... O senhor está me ouvindo?
Senhor Mika?

Diz o rapaz atrás do balcão e ele está correto, não estou prestando atenção, como sempre estou oscilando entre outros fatos e não no presente.
Olho na direção dele e digo, mesmo sem estar a par dos últimos trinta segundos de conversa, que sim, quero as duas garrafas de vodka.
Gosto desse nome e do seu som, são letras secas que sugerem a sede. A palavra deriva de “voda”, que é água em russo, foi Mendeleev que descobriu a porcentagem correta da mistura entre a água e o destilado alcoólico.

Pra mim é difícil saber, entre ele ou Kalachnicov, quem teria afinal contribuído de forma mais útil e significativa para com a humanidade.
Escolho uma Grey Goose e uma Chopin nas prateleiras, me senti tentado a comprar a Crystal Skull, mas já bebi nesse tipo de recipiente, não seria exatamente uma experiência nova.
Pago pela bebida e saio.
As ruas estão vazias.

Minha cidade tem doze milhões de habitantes, a essa hora apenas uma fração desse número total está acordada, é isso que torna minha caminhada algo suportável. As luzes de neon dos bares e lojas vão diminuindo conforme me afasto das grandes avenidas e sigo pelas ruas paralelas até meu apartamento, ele fica em um ponto pouco movimentado não muito longe daqui.
Desde a primeira vez que vi a luz colorida e aveludada de uma lâmpada de neon imaginei que o inferno deveria ser infestado delas, do primeiro ao último círculo.
Essa palavra neon vem do grego, significa “novo”. Como deve ter notado, tenho certo fascínio por palavras que nomeiam objetos... Elas preenchem eles de significado.
É impressionante imaginar que uma espécie que é capaz de criar tantos sinais e luz ainda esteja presa aos padrões de dia e noite. Se tudo fosse diferente, as pessoas estariam aqui vivendo suas vidas ao invés de se esconderem em cavernas de cimento e vidro.
Eu não compreendo porque eles preferem usar a noite somente para dormir, como se fosse errado continuar dentro dela, possivelmente esse é um resquício primitivo da dependência do Sol ou do medo que um dia sentiram dos grandes predadores noturnos.
Esse medo levou a humanidade a única resposta diplomática que ela compreende: extinção.
O smilodon ou tigre dentes de sabre foi uma dessas vítimas, era um animal fascinante, dois metros e meia tonelada de músculos, eu lembro de coisas como o som deles e a forma como eram velozes e brutalmente precisos. Eles eram uma boa razão para se temer a noite, muito mais assustadores do que o rapaz que está caminhando na minha direção.
Ele deve ter uns vinte anos, não consigo ver seu rosto por causa do capuz da blusa vermelha e desbotada que ele usa, só consigo perceber que é garoto branco e esguio. Imagino que toda criatura viva conserva alguns instintos básicos de sobrevivência, essa base comum me diz que ele é uma potencial ameaça e que eu poderei ser atacado.
Não sinto realmente medo ao perceber isso, tão pouco, prazer.
Só consigo pensar que gosto da camisa que estou usando e que vai ser uma pena estragá-la.

Ele caminha na minha direção até barrar minha passagem e fala alguma coisa que não procuro realmente decifrar, é mais jovem do que pensei, dá para ver pelos ossos do rosto, também não age sob o efeito de nenhuma substância que eu conheça, ele está atento e completamente consciente. Isso é bom.

Ele fala mais alto, com um tom apressado.
Dentre os seis mil idiomas no mundo, algo próximo de mil tem alguma utilidade prática, são esses que eu domino. Não é um truque tão complexo quanto parece, já que conheci as línguas originais das quais esses idiomas derivam, e mesmo assim; mesmo sendo letrado em insultos de todos os países eu não faço a menor ideia do que o rapaz está tentando me dizer.
Sei somente que quer tomar algo meu e nesse ponto não é muito diferente de qualquer outro animal com o qual já me deparei.
Eu começo a sorrir, nem tanto pela situação em si, mas pelo desfecho inevitável. Conheço esse caminho, sei como isso vai terminar.
É o sorriso no canto da boca que finalmente o faz parar de falar comigo e agir.
Detesto o som de armas de fogo, nunca gostei do estampido sem classe e seco delas.
Em três disparos ele acerta duas vezes meu peito, o segundo tiro falha dentro da arma. Munição molhada ou velha eu presumo, desleixo é algo terrível.
Ferimentos de entrada e saída relativamente pequenos abrem-se. Eu gostava dessa merda de camisa.

Acho que o rapaz esperava realmente que eu caísse, gritasse ou me encolhesse colocando as mãos na frente do rosto, porque ele parece bem surpreso quando continuo sorrindo.
Logo as pessoas nos prédios próximos abrirão suas janelas e ligarão as luzes para olhar a rua, fico pensando qual era o brilhante plano desse garoto. Pegar o dinheiro, que ele nem tinha certeza que existia, e sair correndo? Mesmo que eu estivesse me esvaindo em uma poça de sangue o resultado seria igualmente medíocre. Ele entraria em pânico e fugiria.
Seja como for, logo isso vai estar encerrado, cedo ou tarde alguém vai começar a gritar.
Desço minha mão livre até um dos bolsos do casaco e tiro dele uma faca com um pouco menos de um palmo. Não sinto prazer mas era uma camisa nova entende? Gostava dela.
Acerto o estômago dele, escuto o gemido, a sensação é como abraçar alguém com força.
Talvez por isso não goste de armas de fogo, são impessoais e fáceis. Ele cai de joelhos, um outro rapaz no final da rua corre na direção oposta de onde estamos, para longe. Os dois, imagino, estavam juntos.
É difícil encontrar alguma lealdade hoje em dia, não é? Igualmente complexo é remover a lâmina de dentro do garoto. Exige esforço puxá-la e quando consigo removê-la, faço um risco profundo no lado esquerdo da garganta dele. A queda tem um som abafado e macio, os sons seguintes são os meus passos me afastando. Eu não escolhi uma cidade grande como essa gratuitamente, coisas demais acontecem com doze milhões de pessoas, leva tempo reagir a cada uma delas.
Minha camisa preta está manchada de vermelho e ainda há os buracos. O casaco que uso e as compras que carrego escondem a imagem da selvageria desse último minuto. Eu não corro.
Apenas ando de volta para casa e penso como eu invejo o garoto deitado na rua.

Passo pelo porteiro, subo e entro em meu apartamento. Abro e fecho a porta, esses gestos são tão automáticos... Preciso de um banho.
Coloco uma das garrafas no freezer e a outra carrego comigo, se tivesse realmente alguma certeza sobre o resultado do que irei fazer não me daria o trabalho deixar uma delas gelando.
Passo os olhos por todos os relógios da casa enquanto vou para o banho e depois para o quarto. Alguns minutos apenas se passam, no intervalo entre dois copos grandes da bebida tão cristalina, os comprimidos. Todos os trinta do frasco, os esmago, um por vez jogando os grãos dentro do terceiro copo cheio com vodka para então misturar tudo com uma colher.
Bebo todo o líquido, sinto um gosto horrível de anis e penso se é assim que morro.
Não lembro de sentir sono.
Eu apenas me deito e fecho os olhos.
...



Acordo.
Sentindo todo um universo de dor concentrado no espaço dentro do meu crânio, é noite e apenas compreendo isso por causa das luzes que varam a janela, cada uma delas passa por mim como uma lâmina... Eu continuo vivo.
Meus olhos estão se refazendo, reaprendendo a interpretar a luz, a dor é lancinante e mesmo assim eu não digo o nome dele. Eu não faço como as outras pessoas. Não o evoco quando as coisas parecem ruins, quando sinto dor ou quando me sinto perdido e jamais farei isso.
Me arrasto devagar, da cama para o chão e depois para fora do quarto, minhas pernas estão fracas demais para ficar de pé, tento chegar até o banheiro. Preciso de um pouco de água.
A sensação de vertigem é horrível. Preciso vomitar. Eu sempre sinto que preciso de algo.

Ajoelho-me diante da privada de porcelana branca e abraço-a como se ela fosse minha mãe. Sim, com devoção... Ela me recebe com cumplicidade silenciosa. Jamais faria isso por ele.
O chão embaixo de mim é absolutamente imaculado e claro como um glacial. Não sinto o frio do piso, ainda não voltei a sentir minha pele, há apenas essa dor intangível acompanhando meus pensamentos. Começo a vomitar... Poderia omitir os detalhes desse processo desagradável, mas qual sentido haveria nisso? Minha vida já é pública e as chagas nela são o ponto alto do espetáculo, então, qualquer um pode continuar comigo enquanto começo a cuspir o líquido viscoso e ácido, repetidas vezes até ficar sem ar e sem mais nada em meu estômago.
Ao término desse pequeno e pouco charmoso purgatório, ainda permaneço sentado, encostado em uma das paredes esperando meu corpo voltar a funcionar.
As novas e modernosas drogas que tomei não funcionaram, ao menos, não para mim.
Elas deveriam ter parado meu cérebro e até acredito que o fizeram, sem dúvida o que tomei me matou, contudo e infelizmente, não foi em caráter permanente.
Foi uma tentativa válida.
Menos suja do que a ocasião em que usei uma arma para decorar a parede com metade a minha cabeça e menos humilhante do que quando fiquei alguns dias dependurado pelo pescoço tentando me soltar. Posso garantir que minha sobrevivência não trata-se de um milagre, antes que a hipótese seja mencionada, ao menos não na concepção mais comum da palavra.
Levo vinte minutos para controlar novamente minhas pernas e conseguir levantar, deixo o banheiro ainda cambaleando, se os relógios espalhados nos móveis estiverem certos só se passaram trinta horas desde que tomei os remédios, não posso esconder uma certa desilusão.
Talvez eu devesse tentar nadar com os tubarões na Austrália, mas considerando o histórico existente, acabaria acordando dentro da barriga de um deles... Isso se ele não morresse de indigestão e encalhasse em alguma praia ou rede, de onde então, para a surpresa das testemunhas, um homem vivo seria retirado das entranhas da fera.

Seria patético.
Uma imensa perda de tempo e o tempo é uma das minhas obsessões, não gosto de jogá-lo fora. Sabia que os primeiros relógios surgiram em 1.400 antes da era cristã?
Sei disso porque estava lá. Estar lá não é um bom argumento em discussões acadêmicas, se fosse, eu seria insuportável naquelas recepções e jantares maçantes, talvez me tornasse a alma da festa, todos pensariam que estou brincando quando ouvissem da minha boca que sou a criatura viva mais antiga do planeta com meus dez mil e seiscentos anos.
Sei que existem alguns fungos, moluscos e plantas disputando esse título comigo, mas desconfio que nenhum deles é muito comunicativo em festas. Digo, sem orgulho algum, que presenciei toda a história da humanidade.
Vi, in loco, o que outras pessoas apenas estudam. Vi como praticamente tudo surgiu através da experimentação e erro, feito macacos curiosos cutucando cupinzeiros, abismados com a própria engenhosidade e com os imprevisíveis resultados que obtinham a cada nova tentativa.
Estive presente quando países nasceram e diante de todas essas magníficas proezas, eras e dinastias tudo o que consigo pensar é:

“Grande merda...”

Tive todo o tempo do mundo para perceber como ele parece fútil e eu estou preso aqui com eles. Nessa gaiola, nesse inferno particular.
Talvez por isso relógios me fascinem, eles reconhecem que o tempo é o devorador de todas as coisas no final e eu desejo isso. Eu quero o fim das coisas, porque elas simplesmente me parecem estagnadas. Somente o tempo compreende como tudo é vão.
Sejam por pêndulo, quartzo, azeite ou atômicos. Esses relógios testemunham e observam exatamente como eu, os vejo como meus iguais... Coisas... Meus únicos iguais são coisas não as pessoas. É tolice ter a pretensão de continuar sendo humano quando você vê a passagem de trinta e duas gerações de uma mesma família ou quando a cada meio século todos que você conhece morrem e parecem renascer... Com outros nomes, cores, vozes, mas no fundo, são as mesmas pessoas, as mesmas combinações genéticas embaralhadas como cartas e distribuídas em cascas novas. Os mesmos erros estúpidos, as mesmas dúvidas, medos, sensações e cada um deles se acha tão incrivelmente singular.
Isso tirou minha humanidade.

Não a deixei quando fui expulso do paraíso, não a perdi quando comecei a ver as outras pessoas passarem por mim feito estações do ano.
Eu não me tornei um monstro nem mesmo quando matei meu irmão, aquilo foi bem humano e justificável desde que você compreenda como é a corrosiva sensação de não ser escolhido.
Incrível, ainda sinto meus dentes trincando quando penso na expressão bovina e assustada dele enquanto mantinha minhas mãos em volta do seu pescoço magro.

Eu preciso de um banho... Acho que vou vomitar outra vez.
A outra vodka ainda está na geladeira. Isso é bom.

...Como invejo aquele rapaz.





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