Os pés de Jéssica


art by ~wanderingthinker





A fumaça enfeitava a noite já cansada de existir.

O ambiente fechado enchia os poros de suor, que se misturava nas peles também já cansadas.

Odair entrou com sua costumeira lentidão, e quem o visse pensaria que certamente ele estava chapado. Mas não, Odair era assim mesmo. E todos na casa o conheciam.
Chegava sempre cedo, arrastando seus pés cansados sobre o chão grudento. Sentava no canto mais escondido e escuro, onde ele pudesse ver sem ser visto.
Tomava uma dose de pinga pura e esperava o espetáculo começar: O espetáculo das pessoas tingidas de cores.
Pessoas que para ele eram sobrenaturais. Seus vestidos, seus olhos pintados e seus olhares tinham tons nunca antes vistos na luz do dia.

Tudo aquilo tinha cor, tinha volume, tinha peso, tinha luz, tinha sombra.
Odair sempre pensava como se sentia mais perto de Deus naquele lugar.
Como se sentia vivo. Tão vivo.

Era por isso que gastava quase toda aposentadoria com muito orgulho tomando sua pinga e fazendo um agrado às suas mulheres. Sim, todas eram suas mulheres. Porque ele via cada uma delas, como elas eram, e só elas sabiam disso, e só Odair sabia como elas eram.

Não gostava de tocar, não ousava tocá-las tamanho respeito que possuía por aquelas figuras.
Por aquelas mulheres.

Mulheres tingidas de cores que o tratavam com carinho e respeito.
Todas adoravam Odair, desabafavam com Odair, reclamavam com Odair.
E ele ouvia paciente, e achava fascinante conhecer todas aquelas mulheres com tanta intimidade. Odair sentia que assim, conhecia o mundo.

Para Odair aquilo era o paraíso: Abafado, fechado, a vida condensada e espremida num só lugar. Tão espremida lá dentro que às vezes chegava a explodir, e vazava alguém porta afora, ou mesmo rolando entre os cacos da janela quebrada embebidos em sangue e suor.

Aquilo para Odair era a vida pulsando. Odair morria de rir desses incidentes tão típicos do local. Mas ria baixinho, com a mão sobre a boca como aprendera desde que perdera alguns dentes e teve que usar ponte.

Mas tudo encantava Odair. Até o som do vidro se quebrando, fosse em garrafas ou janelas...Aquilo era música.

Kátia, Greice, Vivian... Essa noite teria o show da Jéssica. Que era a sua preferida.

Não sabia bem porque, mas imaginava que Jéssica tivesse um gosto diferente das demais, embora nunca tivesse experimentado.
Ela olhava diferente.
Não para os outros, talvez para ele.

Ou talvez para os outros sim, mas não só para os outros. Para o mundo.

Jéssica tinha mais sombra no olhar embora usasse pouca maquiagem. Jéssica não tinha formas tão avantajadas quanto às outras, e nem todos preferiam Jéssica.
Mas... Jéssica tinha aqueles pés.

Aqueles pés que Odair jamais ousara tocar, mesmo que Jéssica tivesse permitido e insistido tantas vezes notando a adoração que Odair tinha por eles.

Apenas uma vez, enquanto Jéssica dormia, Odair percorreu sutilmente o indicador por toda parte superior do pé esquerdo de Jéssica.
Porque se ela estivesse acordada Odair não teria coragem. Tinha certeza de que ela sentiria através do seu toque tudo aquilo que ele nunca teria coragem de dizer. Sentiria o seu desespero, a sua solidão, e ficaria assustada com certeza. Então, somente naquele dia, Odair passou o indicador sobre o pé esquerdo de Jéssica e ficou olhando para o próprio dedo por muito tempo, com a boca aberta num sorriso bobo.

Odair nem se atentava às formas de Jéssica, que para ele já eram tão conhecidas. Olhava para os pés dela. E dava um sorriso de satisfação.
Quando Jéssica estava no palco Odair se sentia orgulhoso de ver como as pessoas olhavam para Jéssica. Aquelas pessoas estavam em paz, ele não via isso lá fora. Naquele momento Jéssica era Deus, pois só Jéssica importava para todos, e até as outras meninas que dançavam em outros colos só o faziam, graças ao ritmo instaurado por Jéssica.

Aquele palco trazia um poder a quem lá entrasse.
E nesse momento era Jéssica o centro das atenções.
Embora fosse sempre o centro das atenções para Odair.

Desde a primeira vez em que ele entrou naquele lugar, sequer se lembrava de quando, não era bom com datas. Mas devia fazer muito tempo porque Jéssica era muito novinha e seu olhar de sombra agora, antes era só medo.

Hoje ela não tinha mais medo.
Ela tinha cansaço de saber que a vida era só aquilo e pronto e no fundo tinha até saudades de seu medo. Odair sabia disso, ela havia lhe revelado certa vez:

“Saudades de ter medo. Saudades de me sentir vulnerável na vida”.
Repetia ela, bêbada.

Hoje ela tinha certezas que não a assustavam. E ele entendia. Respondia com seu costumeiro silêncio e seu olhar lento, mais lento que o coração de Jéssica. E por um momento eles se entendiam.
Certa vez, e Odair sempre corava ao lembrar-se disso, sonhou que pedia Jéssica em casamento, que compravam um terreno com quintal grande e que todas as noites ele massageava seus pés. Aqueles pés tão cansados de saltos.

Na verdade, Odair não sabia se tinha sonhado ou imaginado.
Imaginado ou vivido tudo isso em alguma realidade paralela.
Mas, se dissesse isso em voz alta diriam que ele era só um velho doido. Então ele preferia pensar que sonhou com aquilo. Olhou-se num daqueles cacos de espelho colados à parede.

Não era tão velho, talvez um pouco maltratado pela vida. Ajeitou o que restava do cabelo e coçou a barba. Olhou para Jéssica. E achou que ela tinha lido seus pensamentos.
Mas já era tarde para esses pensamentos. E Jéssica ainda tinha muita coisa para viver naquela noite colorida, naquele espetáculo que era sua vida.

_Jéssica está cansada - notou. E pela primeira vez sentiu que não tinha motivos para sorrir ali dentro. Pois Jéssica estava cansada.

Aquilo o perturbou profundamente.
Ajeitou a camisa tentando resgatar o resto de vaidade que talvez tivesse existido um dia nele, olhou ao redor e aquelas cores começaram a lhe arder os olhos. O cheiro lhe causava náusea, e Jéssica estava cansada! Será que ninguém percebia que Jéssica estava cansada? Todos dançavam, se beijavam e riam despreocupados com os pés de Jéssica.

Como ele podia ter gostado desse lugar, dessas pessoas?

Fechou a cara.
Tomou mais uma dose de pinga e mais outra por Jéssica que estava trabalhando e não poderia acompanhá-lo naquela hora.

Jéssicaestácansadajéssicaestácansadajéssicaestácansada – repetia ele mentalmente, embriagado. Cansado.
Olhava ao redor e todas as cores se confundiam na sua cabeça, criando outras novas que o perturbavam mais ainda. As expressões pareciam caretas e o som dos risos alheios não passavam de lamentos ou grunhidos desesperados.

Precisava tirar Jéssica dali.
Não conseguia mais respirar naquele lugar abafado, sabia que se chegasse perto de Jéssica, só um pouco mais perto, se sentiria melhor, e ela, ela também saberia que era hora de ir embora, de deixar aquele lugar, para sempre.

Passou por alguns casais, fumaças e odores para chegar até ela.
Mas não chegava nunca.
Alguém sempre o empurrava para trás, quase com violência. Mesmo que pedisse licença daquele jeito tímido e educado.

Odair foi reunindo forças, que vinham diante da indignação do cansaço de Jéssica e da indiferença dos demais. Não se culpou por não ser educado, e bruscamente foi abrindo caminhos, imaginando que este era o trajeto até a sua felicidade, até uma nova vida com Jéssica, longe daquele lugar, longe daquelas pessoas.

Pediria Jéssica em casamento pediria Jéssica e agora nada mais importava nada mais importava porque agora Odair não tinha mais medo ele falaria com Jéssica falaria com Jéssica tudo o que nunca teve coragem de falar Odair estendeu os braços para Jéssica estendeu os braços para Jéssica pedindo doando recebendo suplicando por ela por tocá-la por seus pés mas Jéssica estava cansada Jéssica estava cansada e provavelmente seus pés doíam os pés de Jéssica pobre Jéssica doía tanto doía tanto que Odair sentiu um estalo na própria cabeça tão grande imaginava ser a dor dos pés de Jéssica.

E por um momento Jéssica encarou Odair, com aqueles grandes olhos que dessa vez, pareceram sentir o que era medo novamente.

Odair sentiu seu corpo cair em meio a uma gritaria e pensou sorrindo: “Não se preocupe Jéssica vou massagear seus pés” Quando sentiu seu perfume, inconfundível, e pensou estar sonhando ao ver que Jéssica o segurava em seus braços.

_O velho ia te atacar! –gritou alguém que parecia estar com uma garrafa quebrada na mão enquanto dois seguranças corriam até ele. Odair não tinha muita certeza, sua vista começava a embaçar.

Teve impressão de ouvir a doce voz de Jéssica falar algum nome feio.

“Os pés de Jéssica devem estar muito cansados mesmo, ela não costuma falar palavrões”.

Odair notou que Jéssica devia estar muito triste naquele dia ao conseguir focar seus olhos. E ficou mais preocupado ainda com o cansaço de seus pés.

Jéssica estava transtornada ao ver a respiração ofegante de Odair, notando seu desespero para balbuciar palavras que não saíam. Odair gesticulava com esforço e apontava para seus pés.

Jéssica entendeu. Tirou os sapatos para alívio de Odair e os entregou em suas mãos. Finalmente Odair respirou mais calmo e aliviado. Sorriu para Jéssica, dessa vez sem esconder o sorriso com a mão.

Abraçou os sapatos, e morreu em paz.


art by ~ignasigju

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