Salamandra

photo Ligaliterária


Daqui até o primeiro passo no palco são dez minutos.

Ele desce dos ombros dela e permanece na coxia, não se atreve a acompanhá-la. Muito antes, quando o teatro está vazio, ou muito depois, quando as coisas precisam ser limpas, não há problema, mas nunca agora nas proximidades do ato.
Nunca.

Não é seu território, ele conhece seu lugar e é aqui nos bastidores, longe de toda aquela claridade que só uma boa verdade é capaz de gerar.
Ele sabe que o palco é um tipo de campo santo alimentado pela presença da plateia e por seu conceito coletivo de realidade.

É essa percepção de limite, inerente a espécie, que torna pentagramas, imagens santas, solos sagrados e riscos de giz tão efetivos contra eles, simplesmente porque demônios não tentam jogar sem ter uma vantagem explícita.

Seu nome é Histiel e isso o prende.
Ele é pequeno, sutil e discreto mas não é baixo ou ínfimo, ao contrário, é tão grande quanto uma ideia ao se formar e duas vezes mais perigoso.

Não há a necessidade de ser alto como uma árvore se você for afiado feito um espinho.
Histiel irá esperar a garota voltar da apresentação, pacientemente, e nesse meio tempo cuidará da alma que ela deixou para trás, não por conta da existência de algum pacto ou contrato, mas porque, ao subir no palco, ela abandonou sua própria essência para tornar-se plena e isso é algo que vale a pena ver.

Ela é uma atriz.
Não tem um nome ou quaisquer outras marcas visíveis, permanentes ou constantes que possam prendê-la. Ao menos, não enquanto estiver ali.

Ela é diferente dele, especialmente por ter todas aquelas almas enquanto ele é o vazio.
Almas no plural, que vem e vão dentro dela.
Ampliando-se e resumindo-se feito ondas no mar.
Olhos castanhos claros e sombreados por azul em tons metálicos, hoje.
As belas pernas marcadas pelo vestido negro, hoje.
A voz cheia, firme e pausada, hoje.
Os lábios bem desenhados e o ar reverberando fogo, hoje.

Amanhã.
Ela será totalmente diferente, ainda que continue mesclada com cada uma das pessoas que formam o público dentro do teatro, ela será um mecanismo novo.
Vestida com outras máscaras e contendo centenas de outras vidas.

Os presentes hoje, diante dela nas fileiras de cadeiras, serão suas testemunhas, seus cúmplices de crimes e juízes em absolvições. Amanhã serão outros os incautos visitantes desse labirinto.

Ela será todos eles.
Ela será uma legião.
Isso intimida Histiel e coloca-o atrás dos refletores.
Quieto. Fascinado, assim como todos os outros espectadores e pecadores, pela possibilidade de provar outra vida. Sem culpas.
Sem arrependimentos ou medidas.
Principalmente, sem vazio.


Durante a próxima hora ele existirá como uma parte dela.
Em cada frase e gesto.
Será fabuloso para o pequeno demônio.
Vê-la deixar de ser uma.
Para tornar-se todos.

Será fabuloso.
Deixar de ser ele.
Para novamente.
Ser humano.



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