Allāt, Aldebaran, Anjos e Vodka.


art by H-Minus
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Eu odeio minha profissão.
Não sempre, mas com alguma frequência... Especialmente agora.
Desculpe dizer isso, mas é a verdade. Eu odeio.
Deveria ter sido um mensageiro, eu não me importaria em levar e trazer recados, ou quem sabe causar visões, não me incomodaria de sussurrar presságios. Há afinal alguma dignidade objetiva em ter os mesmos poderes alucinógenos de uma boa vodka.
Até sei que há trabalho pior, como reduzir uma cidade inteira a sal ou servir de instrumento para a ira divina, mas a despeito disso e em virtude de todas as possibilidades, odeio o meu estado atual.
Não sempre.
Só agora.

Enquanto a observo.
Gosto do seu nome, embora o pronuncie pouco, como se, ao não nomeá-la, pudesse preservá-la do mal. Estamos em julho. Será um mês frio.
Essa é a época do ano em que as pessoas normalmente percebem que há algo errado em suas vidas e tentam mudar. Não sei se é nisso que ela pensa, de qualquer forma, é raro vê-la sozinha e quieta. Ela evita o silêncio, como eu evito o pecado, porque ele a faz parar e pensar sobre si.

Quando se faz calada e olha para o espaço entre seus músculos e pensamentos, ela não vê só o conjunto de fatos que formaram uma garota com seus vinte e poucos anos, ela vê, infelizmente e como cada pessoa que já viveu nessa terra, um abismo intransponível de profundidade assustadora.
Haveria, sem dúvida, mais paz no coração de um tornado, por isso o som e a fúria sempre parecem melhores escolhas. Seu normal é existir em uma espiral de vozes, intenções, músicas e palavras. Uma miríade de sensações e objetos atraídos, quem sabe, por sua gravidade irresistível.

Não culpe-se caso não compreenda isso ou se não conseguir sentir a presença elétrica e maciça dela.
Você não teria como saber.
Você não a vê.
Não foi ainda capturado por seus olhos castanhos e não ouviu ainda a respiração baixa.
Não sentiu o tempo manter-se estático quando ela ri.
Nem pode presumir o que é ver o mundo através dos cabelos curtos e claros, quando o rosto dela está bem próximo do seu e ela olha-o atentamente, esperando ansiosa que você faça-a ver algum sentido na coleção de erros que chamamos de vida.

Não diga-me que compreende. Porque você não está aqui guardando seus passos.
Não diga-me que sabe. Porque mesmo depois do que mencionei, ainda há tudo aquilo que você não conseguiria perceber de imediato. Os segredos abaixo da pele tatuada.
Existe a solidão por enxergar-se como a última remanescente de sua própria espécie.
A incondicionalidade em cada um dos pequenos e singulares detalhes que fazem-na única.
Sabe... Eu odeio meu trabalho.
Não sempre.
Só agora.

Ao vê-la assim. Dividida entre a mágoa e perplexidade.
Eu gostaria de dizer a ela que tudo ficará bem, que esse vazio insustentável irá se dissipar.
Amanhã será um dia melhor.
Tudo ficará bem.

São vinte e três horas, ela não sente sono algum.
O quarto está organizado mas parece totalmente fora de lugar, deslocado.
Reflete uma parte da sua vida.

Tento, inutilmente, estabelecer por qual razão a espécie dela é tão sensível a solidão.
Por que eles sentem isso?
Por que ela sente?

Ela é tudo, é um universo em sua completude.

Guarda em si todas as respostas para as mais essenciais perguntas e, mesmo assim, ela trocaria cada fração desse conhecimento e imensidão para deixar de ser tudo...

E tornar-se parte de outra pessoa.
Que a completasse e conferisse-lhe um sentido.
Alguém para acompanhá-la nos dias bons.
E amá-la nos ruins.

“Coloque alguma música por favor.” Eu digo enquanto caminho para a janela do quarto.

Ela não me escuta, mas escolhe uma e deixa para tocar repetidas vezes.
“...I've been the girl with her skirt pulled high
Been the outcast never running with mascara eyes
I see the world as a candy store
With a cigarette smile saying things you can't ignore...”

Ela acende um cigarro. “Você deveria parar...” Eu digo enquanto olho para a cidade.

Ela não me escuta.





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