Do Fundo do Coração.


photo movie American Psycho (2000)


    Palco. Decoração simples como em um porão. Luminárias brancas. Que irão com o passar do texto sendo apagadas até chegar-se ao ponto de escuridão total. Um espelho oval grande. Uma tina com água junto ao espelho sobre um criado mudo. Um aparelho telefônico sobre um criado mudo.
    Duas cadeiras, mesa, maleta médica, estojo. Um coração de porco (que segue as proporções médias de um coração humano) embrulhado. Seis outros corações preferencialmente já preparados e mergulhados em uma solução transparente de formol, organizados em outros potes.

    Sete luminárias cruzando o ambiente com luz. Ao longo da narrativa, uma a uma elas vão sendo apagadas.
    Aumentando progressivamente a escuridão.
    Roupas. Roupa social, terno escuro e sóbrio, simples, discreto ou sobretudo. Camisa branca, imaculada. Cabelo meticulosamente ordenado e penteado.
    Telefone toca, algumas vezes.

    Ao entrar em cena o médico não atende de imediato. Primeiro deposita um pacote pequeno sobre a mesa de centro, com delicadeza, em um gesto simples, depois tira o casaco, em seguida sem pressa desabotoa uma das mangas. Atende, e enquanto desabotoa a outra manga da camisa começa a falar. O tom de voz é calmo, claro. Gentil.

    "Alô"

    "Oi mãe... Tudo... Para você também. Para você também. Eu não sei se vou chegar a tempo do jantar...É... eu sei que tinha prometido passar por aí mas eu fiquei ocupado com alguns pacientes. Alguns assuntos estavam pendentes.
Eu sei... Sim eu vou como prometi. Não precisa ficar preocupada, está tudo bem.
Apenas vou me atrasar. Meus irmãos já chegaram não é? É... dá para ouvir as crianças. Tá bom mãe. Até mais tarde. Beijo."

    Ele caminha até a tina de água, então para diante do espelho. É somente por um segundo, que o peso de todo mundo parece cair sobre suas costas. Após abaixar a cabeça e ver a sua sombra refletida na água, ele respira profundamente deixando o ar sair. Libertando-se de algo. Abandonando.
    Enquanto começa a lavar as mãos ele diz:

   "Lady Macbeth tinha alguma razão. É estranho. Eu sei que minhas mãos estão limpas. Eu sei que estão limpas, porque posso vê-las, desde as unhas impecáveis até as veias. Elas estão limpas...contudo por mais que eu as lave elas parecem sujas e essa sujeira parece tatuada na pele. Não é por remorso. Duvido seriamente que essa sensação de impureza esteja ligada a consciência ou laços morais. Porque não disponho desses penduricalhos e ornamentos.

    É algo áspero, impregnado sobre e sob a superfície inicial.
    Mesmo que eu removesse a camada de carne, se eu cortasse e puxasse... Essa coisa... Isto que sinto... Iria se infiltrar nos músculos, fugir para os ossos e ao perceber minha vontade de extirpar-los, trançar-se-ia em minha coluna, até esconder-se, enfim, dentro da alma.
   Se é que já não o fez... Não é?”

    Uma das setes luzes existentes nesse ambiente é desligada aumentando progressivamente a escuridão.
   Como um animal, isto cavaria fundo, com propósito final de substituir meu espírito por si próprio. Tomando o lugar do que era humano em mim e foi perdido... Assim seria impossível removê-lo. Se é que isto já não o fez... Não é mesmo?

    É por isso que algumas pessoas tiram a própria vida...
    Porque a única forma de se verem livres desse sentimento ou da ausência do mesmo é através da morte. Elas não se matam a bem da verdade... Matam o receptáculo, o casulo que abriga essa coisa. Isso.
    Ele inclina-se, trazendo um pouco de água até o rosto e lavando-o. Com cuidado e cálculo.

    "Parte deste peso que sinto é resultado imediato de tocar a realidade ou de descobrir que esta não existe.
    Que vivemos imersos em um sonho bruto, rodeados por um véu negro... E quando esse véu é desfeito...Junto com a visão vem a dor, uma macula. A cicatriz.

    Eu não via o mundo assim antes... Eu não via a humanidade como um cultivo de bactérias, aprisionadas dentro de um tubo de ensaio gigante. Não olhava as pessoas como uma colônia de insetos pequenos, com suas pequenas certezas, medos e conceitos. Com funções cerebrais mínimas, correndo, comendo e defecando... Movendo-se atarefados de um lado para outro sem um propósito definido.

    Pisando-se uns sobre os outros, por acreditar que cada um deles individualmente é mais importante que todos os demais.
    Nem mesmo lembro a última vez que uma dessas coisinhas formadas por cabelos, carne, ossos e egoísmo me pediu licença ou por favor.
    Certamente por seguirem o princípio que o tempo deles era mais importante do que o tempo de todas as demais criaturas vivas.

    Sempre correndo, sempre atrasados para chegar em algum lugar. Não importa a hora do dia.
    Acotovelando-se, empurrando-se em desespero nos veículos e transporte coletivo. Nas filas, nos segundos antes de entrar em qualquer local.
    Tentando disfarçar o fúria que atormenta cada um deles, a insatisfação contínua por estarem vivendo vidas erradas.

    Deus... eu não via a vida assim.
    Eu não via a humanidade desta forma... eu era um deles... eu sentia empatia e não... nojo.

    Essa claridade implacável que faz-se agora presente em meu caminho parece-me revelar tal perspectiva. Essa luz... esse conhecimento novo.
    Torna tudo...tão...cruel.

    Deliciosamente exato... e cruel.
    Um homem não atinge essa iluminação impunemente. Acordar exige o pagamento de um preço.
    Nossa espécie nasce e existe submersa.... adormecida.
    Ela precisa ser guiada para o propósito. Ela deve ser educada através das perdas.

    Dizem que o amor pode educar... Minha esposa e minha filha me ensinaram muito...me ensinaram isso.

    E deveria agora existir uma longa pausa... que demonstrasse o quanto elas ainda significam para mim. Porém, não há interrupção.
    Elas eram.
    Mas não são mais.
    Nem estão mais vivas para ser.
    Outra luz é apagada.

    Tinham peso e gravidade para a pessoa que fui um dia.
    Não para o que eu sou agora.

    Para essa repulsiva soma de desejos que me tornei. Para um monstro elas não são mais nada.

    Não são meus dois amores. Não são mais minha vida.
    A dor é uma excepcional professora...Ela liberta. Eu sou livre. Eu sou resultado da dor.
    Esta é a natureza de minha espécie mover-se entre horrores, ser impulsionada por eles. É o terror que desperta e movimenta os homens. É a estupidez selvagem da guerra que os leva para paz, é a agonia da peste e fome que guia-os a necessidade de bem estar.É o ódio que nos confere propósito... Não precisava ser assim... mas é. Fundamentalmente... é o erro quem nos conduz.

    Foi talvez um erro meu ter ido trabalhar aquele dia...Foi culpa minha voltar tão tarde.
    A memória humana é curiosa... eu lembro do que tomei de café da manhã no começo daquele dia. Suco de uva, torradas com geléia de damasco e pêssego. Lembro de frases que foram ditas no decorrer dele. Do almoço.
    Mas não lembro exatamente dos corpos delas.

    Eu demorei para ir pra casa porque pouco antes do fim do meu plantão
houve uma emergência... um homem baleado. Encontrado próximo ao hospital dentro de um carro. Havia sangue nas roupas dele.

    Aparentemente ele estava dirigindo depois de ser atingido... creio que tentava escapar de quem tinha feito aquilo com ele.

    Três projeteis. O principal ficou alojado no peito, à dois centímetros aproximadamente do coração. Os outros dois não causaram danos significativos, nem atingiram órgãos vitais e foram removidos sem maiores problemas.

    Por causa do risco e da operação delicada eu fui chamado para realizar a intervenção. Ele teve sorte, era um homem grande, forte como um touro. Com uma constituição um pouco mais fraca ele nem mesmo chegaria no hospital e a despeito de seu bom condicionamento físico...ele entrou em colapso cardíaco duas vezes. Foi incrivelmente difícil estabilizar sua condição.

    Quando seu coração parou... eu o trouxe de volta. Ele iria sobreviver.
    Nem sempre é possível deixar o trabalho com uma sensação boa de ter salvo alguém.

    Nem sempre...
    Nem sempre você é capaz de salvar outras pessoas.
    Quando meu carro virou a esquina aquela noite e eu vi as luzes vermelhas paradas diante da minha casa, o tempo passou a correr em câmera lenta.

    Eu sabia o que tinha ocorrido, não como ou com qual intensidade. No entanto eu sabia.
    A distância entre a esquina e o portão, até as duas viaturas... eram metros que pareciam quilômetros.
    Da calçada até a porta, pareciam anos.

    Eu não lembro do rosto dele... mas um policial segurou meu braço. Ele sabia quem eu era... que eu era o esposo e pai. Isso deveria estar escrito nos meus olhos. O policial me disse para não entrar.
    Eu sou médico - eu disse.

    Eu sou médico...

    Não sei se falei isso porque tinha esperança de salva-las ou por pressentir o que tinha ocorrido.
    Psiquiatra e cardiologista. Eu já vi pessoas mortas. Já as vi morrendo na
minha frente, nas minhas mãos. Eu deveria ser capaz de suportar.
    O policial me deixou passar... cheguei até a porta da frente e notei que estava pisando em sangue, depois, vi um pedaço de algo que pareceu a princípio ser um amontoado de roupas amassadas no chão... esse amontoado era minha filha.
    Para ser mais preciso os pedaços maiores dela que haviam sobrado.
    Depois disso caminhei de volta para a porta onde fui seguro por dois homens antes começar a vomitar. Sangue nunca antes tinha me incomodado... claro. Não era o meu sangue antes.

    Que egoísta e humano isso não?

    Vomitei meu almoço. Carne, arroz e legumes. Cenoura e alface.
    Eu lembro disso... Lembro dos moveis quebrados e das manchas vermelhas em determinadas paredes. Lembro dos olhos e boca abertos dela. Do inchaço no rosto demonstrando a violência dos golpes que precederam a morte.

    Existe um longo silêncio, enquanto penso nisso... enquanto pego um dos frascos vazios e deposito dentro dele um coração. Antes de mergulhar o órgão no líquido que irá conservá-lo perco alguns segundos observando sua forma, seu aspecto. Depois fecho-o dentro do pote acrílico conservando-o. Coloco o frasco junto de alguns outros que estavam até então cobertos, cada um deles com um coração dentro. Imerso em formol.

    Um dos frascos é negro, diferente dos demais.
    Este frasco é trazido até as mãos e observado... seu conteúdo não pode ser visto, mas na forma de ser tocado fica evidente que ele é distinto entre seus iguais.

    Especial. O vidro é colocado cuidadosamente a frente da mesa.

    Único e um segundo depois é esquecido para que se prossiga... especial como uma memória a ser apagada.
    Eu lembro do gosto ácido na boca. Dos grãos não digeridos. Eu lembro disso porque não quero ser capaz de lembrar da minha filha.
   Eu lembro... porque não quero lembrar da minha menina.
   Não desejei ver minha esposa, exatamente para não ter como derradeira imagem dela uma porção retorcida de manchas e músculos.

    O assassino foi preso em pouco tempo...

   Após furar um bloqueio policial ele tinha sido baleado. Chegou a dirigir por mais alguns quilômetros até ser levado para um hospital. Depois de ser socorrido ele foi localizado e preso... Um detalhe a ser mencionado, o hospital era o mesmo onde eu trabalho.

    Ninguém desejava dizer isso a princípio.
    Eu compreendo... não é o tipo de coisa que se fala.
    Ninguém sabia como me dizer que o homem que havia sido operado e salvo por mim, era o responsável pela morte da minha esposa e filha. Fiquei sabendo disso alguns dias depois.

    Três projeteis. O principal ficou alojado no peito, à dois centímetros aproximadamente do coração.

   O crime ocupou os jornais durante um tempo até ser substituído por outro mais brutal ou de caráter editorial mais atraente. Eu sinceramente não lembro-me dessas semanas. Há um nevoeiro separando meus olhos desse tempo, dessa época onde morri. Quando deixei de pensar e passei a existir em módulo automático. Passaram-se
semanas...acho. Meses.

    O principal ficou alojado no peito, à dois centímetros aproximadamente do coração.

    Foi quando algo aconteceu.
    Não creio ser necessário descrever o período de tormento agudo, os estágios previsíveis de desespero ou a forma delicada como a alma humana é capaz de entrar em estado de sublimação. Evaporando e deixando em seu lugar o vácuo.
    Isso não tem importância, é natural e esperado. O que interessa e vale a pena ser mencionado são as conseqüências.

    A dois centímetros aproximadamente do coração.

    Depois de acordar em uma determinada manhã, eu fui até o espelho.
    Lavei meu rosto e as camadas secas de dor sobre ele. Fiz a barba, sem pressa, usando uma navalha. Eu sempre gostei de lâminas, o resultado é muito melhor e eventuais cortes tem por função mostrar você está acordado e vivo.

    Tomei um banho que durou quase uma hora. Troquei-me. Fiz o café... cereal, suco de uva...torradas com geléia de damasco e pêssego.

    Assisti um desenho animado... com criaturinhas coloridas correndo de um lado para outro e fui para o trabalho.
    Meus colegas de serviço ficaram surpresos em me ver. Já contava com isso e com os eventuais desejos de pêsames, solidariedade. Foi necessário paciência para demonstrar interesse por essas formalidades.

    Era preciso passar por todo esse ritual que terminaria cedo ou tarde e seria esquecido... uma ou duas semanas bastava isso.
    Quando essa fase terminou eu pude me dedicar ao trabalho.

    A dois centímetros do coração. Uma luz é apagada.

    O assassino da minha família foi considerado mentalmente incapaz, o que levou ele a ser mantido detido em um hospital para tratamento psiquiátrico visando uma futura recuperação e reintegração a sociedade. Para ser sincero eu nunca achei que ele estava fora da sociedade... na verdade passei a vê-lo como um membro adaptado ao sistema existente.

    Durante o tempo de internação foi diagnosticado um problema congênito no coração dele. Algo que cedo ou tarde iria matá-lo. Uma fatalidade não?
    Apropriadamente chamada de morte súbita.

    Claro que operação corretiva era possível e delicada. A condição física do paciente já era frágil. A intervenção seria específica, isso colaborou para a seqüência dos fatos que seguiram-se. A cirurgia seria paga pelo governo. Eu fiquei sabendo disso porque era a única pessoa no país e nessa parte do continente qualificada para fazer uma intervenção dessa natureza. Não tenho certeza como essa junção fortuita de coincidências, entre os laços que uniam previamente paciente e médico, passou desapercebida para o sistema... presumo que a burocracia que normalmente impregna-se nas formiguinhas atarefadas impediu uma visão ampla sobre os fatos. Teriam bastado cinco minutos de leitura para perceber o erro que era entregar-me essa tarefa.

    Teria bastado não ter esquecido o que ocorreu... não ter substituído o crime que me destruiu por outro e depois outro e outro ainda mais violento.
    Era somente necessário isto, para que eles enxergassem o que significava dar a vida do homem que matou minha família uma segunda vez em minhas mãos.

    O processo todo foi lento, passaram-se outros tantos meses, até a data da operação. Houve tempo para notar tal incoerência. Cheguei quase a desejar que eles percebessem a estupidez...mas mantive-me calado. Aprendi a respeitar o destino. Eu também segui os procedimento normais, reuni a equipe médica mínima necessária. Escolhi o dia mais calmo para a intervenção.
    A segurança não precisou ser reforçada, visto o estágio debilitado do paciente. Ele era incapaz de andar sozinho.
    Não houve movimentação da mídia ou imprensa.

    Centímetros do Coração.

    Exatamente as vinte e duas horas e dez minutos ele entrou na sala de cirurgia.
    As vinte e duas horas e treze minutos, depois do paciente ser preso firmemente a mesa de operação eu sorri para minha equipe e me despedi deles dizendo boa noite e que estava agradecido à participação de todos.
    Eles eram bons amigos meus, costumavam a ir até minha casa.
    Jantar com minha esposa e com minha filha.

    Silenciosamente eles saíram. Havia uma leveza nos passos deles... um silêncio e ausência de culpa admiráveis.

    As vinte e duas horas e quinze minutos o andar já encontrava-se vazio.
    As únicas pessoas que ainda me esperavam eram o legista e meu paciente... O legista aguardava para assinar os papéis restantes, referentes ao óbito prestes a ocorrer.

    As vinte e duas horas e dezesseis minutos o meu paciente foi declarado oficialmente morto por mim.
    Eu olhei para o relógio na parede e disse isso em voz alta...observando a reação pálida e curiosa do homem preso a mesa.


    No minuto seguinte, post-mortem, eu puxei uma cadeira e comecei a conversa com alguém que por todas as definições legais não existia mais.

    Do coração. Uma luz é apagada.

    Ele olhou para mim com uma expressão insegura. Se tivesse forças imagino que ele teria gritado, porque compreendeu que algo estava errado. Graças a Deus ele compreendia. Ele tinha que entender que algo terrível estava prestes a acontecer.

    Compreensão era um detalhe essencial.
    Esse instante delicioso ainda causa-me um certo frisson, da coluna até a pele. Aquela criatura, que era tão vigorosa, agora parecia feita de vidro. O ar demorava para entrar em seus pulmões.
    Seus olhos seguiam os movimentos da minha boca. A ausência de qualquer anestesia ou medicamento possibilitou-me ter a total atenção dele.

    Do fundo do coração. Uma luz é apagada.

    Eu expliquei pausadamente para meu paciente, olhando naqueles olhos opacos, que em uma cidade grande todos os anos e nas últimas décadas, pessoas deixam de existir.
    Deixar de existir é simples. A despeito de nossa convicção que somos únicos e fundamentais para o funcionamento do todo, desaparecer é muito fácil.
    Expliquei que existem cerca de seis bilhões de seres humanos espalhados por todo globo.
    Algumas centenas de milhões desse número total estão aqui em nosso continente. Destas centenas, dispomos de cerca de noventa milhões em nosso país. Quatorze milhões só em nossa cidade.
    Permita-me iluminar você.

    Seu olhar confuso indica que você não me acompanhou ou compreendeu, não é mesmo?
    Mas eu já esperava isso.

    A sua respiração está alterada e eu posso ver seu coração bater sob esses músculos magros... acelerado. Você sabe o que vai acontecer não é? Por isso não se importa com os números citados por mim. Nem com o que eu estou dizendo nesse exato momento.
    Tudo o que importa é você.

    Dentro desse universo numérico apenas um algarismo é importante e esse número é você... correto?
    É o que vai acontecer com você...
    Permita-me retribuir o favor e iluminar você.
    Sabe...

    Pessoas morrem todos os dias, somem todos os dias.

    Como sua realidade e o que você trata como vida é uma experiência limitada somente aos seus desejos e necessidades primitivas... vou tentar arejar seus pensamentos e fazê-lo lembrar que recentemente em sua história pregressa você foi baleado, três vezes.
    Você lembra disso não? Houve dor por isso lembra... sua dor.
    Você foi atendido aqui, por mim. Eu evitei sua morte.

    Na mesma noite, um pouco antes você havia invadido uma casa. No local havia uma mulher e uma criança.
    Tenho certeza que você lembra delas agora.
    Elas eram minha esposa e filha.

    Coração.

    Acredito que se tivesse fôlego ou força, poderia contar-me como foi divertido e prazeroso para você desfazer o corpo delas.
    Ao perceber que não tem como escapar daqui, certamente esbravejaria comigo a forma como gostou de fazer aquilo... como foi divertido.
    Compartilharia isso comigo.
    Iria contar como eram os gemidos e súplicas. Como foi o silêncio opressor que veio depois da morte delas.
    A sensação aguda de saciedade.
    E claro... como elas não eram nada para você... você nem se lembrava dessa noite. Não é?
    Lembrava apenas da sua dor.

    Mas você não precisa se incomodar com lembranças ou culpar sua memória.
    Pretendo que nossa conversa eventual aqui... hoje... sob essas luzes insípidas e fluorescentes seja inesquecível para você.
    Breve... mas seguindo o padrão de dor... absolutamente inesquecível.

    Antes de continuarmos por gentileza.
    Olhe em meus olhos, firme... através da íris, além da superfície.
    Olhe e procure algum vestígio da humanidade que me deteria neste último momento... que me impediria de prosseguir com você.
    Olhe bem dentro deles... no fundo.. até o coração.
    Diga-me se acha que vou parar...
    Diga-me se acredita que serei derradeiramente humano.

    Não há nada não é?

    Nós já estamos compartilhando algo não estamos? Estamos dividindo, somando, aprendendo algo não estamos?

    Naquela noite onde nos encontramos pela primeira vez... eu evitei sua morte e agora eu quero o que te dei de volta.
   Não tome isso como algo pessoal... eu não sou mais uma pessoa.
    Gostaria somente que você soubesse disso antes de eu começar a remover seu coração.

    Nessa passagem de tempo entre aquela noite e esta... eu me perguntei muitas vezes o que havia em seu coração para fazer aquilo com elas.
    Se ele era tão diferente do meu.
    Será interessante descobrir isso agora.
    Uma luz é apagada.

    Calculei que sem anestesia ou demais recursos médicos, avançando cautelosamente, sem causar nenhum grande dano, meu paciente morreria em vinte minutos. Ele agüentou quase trinta.

    

    Eu poderia alcançar meu objetivo em trinta segundos apenas mas onde estaria a graça então?
    No momento final... eu cogitei deixá-lo desvanecer naturalmente através da hemorragia. Isso prolongaria o tormento.
    Mas havia um propósito no ato e eu pretendia  alcançar este ponto.
    Fiz um corte abaixo das costelas, grande o suficiente para minha mão passar e chegar ao coração. Eu senti ele pulsar por alguns segundos antes de começar a puxá-lo para baixo na direção da abertura. Enquanto as artérias eram rompidas a dor deve ter se tornado indescritível.
    Finalmente havia terminado.

    Olhei para o coração fascinado por outros tantos minutos. Ignorando o passar do tempo e aquela carcaça vazia.
    Procurando nas veias e camadas o ponto exato onde o mal ficava concentrado.
    Eu não enxerguei de imediato.

    Guardei meu objeto de devoção em um recipiente negro. Depois voltei ao corpo onde simulei todo o procedimento cirúrgico que deveria ter sido feito, escondendo veias rompidas e os demais sinais da minha selvageria.

    Abrindo as costelas e expondo os órgãos corretamente. Depois costurando e fechando o corpo. Eu não esperava por nada mais... não me importava com o que aconteceria.
    Talvez e exatamente por isso... nada aconteceu.
    Nos dias seguintes nada. Nos meses seguintes nada.

    Não houve perguntas. Meu paciente foi enterrado como indigente, sem família.
    Deixei o hospital e meu passado.

    Deixar de existir é simples.

    A despeito de nossa convicção que somos únicos e fundamentais para o funcionamento do todo...

    Desaparecer é fácil.

    Dizem que assim como a compreensão reside no cérebro, a alma descansa no coração.
    Durante um bom tempo estudei aquele órgão seco que tinha sido extraído por mim... procurando evidências que indicassem que nele residia o mal.
    Provas que confirmassem que ele sentia e se diferenciava dos demais.
    Não encontrei nada relevante na época.

    Não encontrei nada...
    Por enquanto.

    Voltando-se para os demais corações guardados e com uma voz muito macia eu me lembro de dizer antes de terminar.

    Pessoas morrem todos os dias.
    Somem todos os dias.

    Coração.    

    A última luz é apagada.


...

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