Art by ~VampyrIsa16
O teatro é um bom exemplo de humanidade.
É um tipo de arte que acompanha a nossa espécie e que talvez pela familiaridade de tantos séculos seja o mais humano dos espetáculos. Poucas formas artísticas compreendem e tocam o que existe de e além do humano nas pessoas.
O teatro é essencialmente diferente.
Ele depende da presença do elemento humano, precisa de uma alma que sinta-se movida a tocar outras almas....com ódio, risos, amores ou enigmas. É humano, embora, a soma dessas emoções mencionadas não esteja limitada a existência da humanidade.
O teatro as revela.
É uma tentativa, solitária ou coletiva e quase desesperada, de tocar outras almas, de certificar-se que essas elas de fato existem e estão vivas dentro das pessoas.
Mesmo apagadas, encruecidas ou ignoradas... É necessário saber que elas existem.
Alcançá-las.
Observá-las e ser observado por elas.
Uma conversa entre amigos que não se veem há muito tempo e que nunca antes tiveram chance de falar sobre todas as magníficas qualidades e os mais cruéis detalhes que carregam.
No teatro todas as histórias, todos os atos anônimos e heroicos estão presentes.
Assim como todos os pecados e falhas. Todos os crimes dos homens.
Todos os humanos.
Todos sempre Humanos.
Lúcia está atrasada, ela não toma café e nem se lembra a ultima vez que pode saborear um bom café da manhã.
Carmem não acordou ainda. Isso só vai acontecer lá pelas 11:30 da manhã.
Cristiano está na terceira hora de seu expediente, resmungando consigo mesmo, pois ainda demora um bom tempo até seu turno acabar.
Irene está voltando para casa. A noite foi ruim.
Paulo olha sua esposa dormir enquanto sai do quarto procurando não acorda-la.
Carolina está chorando, ela passou a noite em claro, depois da briga com seu namorado.
Rodrigo não acordou, isso só vai acontecer lá pelas duas da tarde; quando ele lembrar que perdeu a hora e muito provavelmente mais um emprego. Ele ficou até tarde escrevendo.
Lúcia entra no ônibus, senta-se e puxa um livro para ler. Em sua mente não estão frases de Camões, nem poemas de Machado. Só uma pergunta incessante. Como será que é viver a vida toda sem tomar um ônibus de manhã? Sem ter que acordar cedo, como é não ser obrigado a interromper os sonhos. Despertar, apenas e somente quando se está pronto e não ter que lutar para viver.
As páginas não são viradas nas mãos de Lúcia. Elas permanecem estagnadas, pasmas diante da constatação, que ela já interrompeu milhares de sonhos. Para acordar e sobreviver.
Carmen não acordou ainda. Isso só vai acontecer lá pelas 11: 30 da manhã. Quando o sol bater na janela do quarto. Ela terá sonhado e terá tempo para saber que acordou, para um bom banho e um café da manhã sem atrasos.
Cristiano, não sonha. Não gosta muito mais de sonhar, falta-lhe tempo talvez mais do que motivos. Falta-lhe concentração, pois tudo o que existe em sua mente são imagens sequenciais de setenta e três maneiras diferentes de matar seu chefe.
Irene finalmente chega no apartamento onde vive sozinha. É bom estar em casa. É bom ter para onde voltar. Seria melhor ter para quem voltar, mas felizmente, ela não sabe disso. Antes que algum pensamento assim passe por sua cabeça ela apanha os papéis em cima da mesa de centro da sala e começa a ler o texto, vai aproveitar esse tempo antes de dormir para repassa-lo. O silêncio é bom.
Paulo passa silenciosamente pela porta de casa, sai com seu carro rumo ao banco onde trabalha como consultor. Um consultor, em tempo, será quase sempre alguém que não faz , que nunca fez e que nunca fará, mas que, certamente, lhe dirá como fazer o seu maldito trabalho.
Ele sabe disso e enquanto escuta um cd de música sertaneja, relembra algumas das falas da peça que vem ensaiando. Sua memória é ótima para textos, números, mas nunca para sonhos.
Carolina não quer lembrar, ela quer apenas esquecer. Esquecer que novamente se envolveu com a pessoa errada, esquecer a noite infernal que passou. Esquecer que é capaz de chorar, de sonhar.
Esquecer que quando sua mãe acordar vai começar a perturba-la.
Esquecer os gritos.
Como o amor pode ser tão bonito nos livros? Como ele pode ser tão doce nas poesias e tão cruel na vida real? Como a vida pode fazer tanto sentido apenas dentro de um palco?
Ela também queria esquecer as perguntas.
Rodrigo dorme ainda. Sonhando com o impossível.
E talvez algo ou algum de seus sonhos lhe inspire a escrever quando acordar.
Haverá outro emprego.
Assim como antes.
Lúcia recebe a ultima ordem no restaurante, pouco antes do almoço. Ela pensa se receberia
tantas ordens ou se teria que obedecer tantas pessoas se tivesse dinheiro. Poder para dizer: Não.
Não para os abusos, não para ser tratada como um bicho de carga, transportada como gado
de corte nos coletivos e sempre com um cabresto curto na boca. Não para os elevadores de serviço e para os pratos feitos da vida. Se ela ao menos tivesse mais tempo para dizer não.
Carmem tem tempo para discordar de seu professor, em um acalorado debate sobre cidadania e a função da arte na faculdade. Na opinião dela, a arte não precisa de uma função, não precisa ser criada como uma bandeira. Ela apenas existe, tão natural quanto um rio ou uma pedra, existe e ganha sua função naturalmente quando toca a alma das pessoas que olham o quadro, vão a peça ou leem o texto. Espontaneamente. Sem exageros políticos, discursos panfletários ou normas éticas. Carmem pode dizer não, ela é livre para pensar.
Cristiano tem tido dificuldades para pensar com clareza. Cada vez que sua mente tenta esboçar qualquer linha de raciocínio criativo, é imediatamente interrompida, por clientes chatos que vivem vidas profundamente desinteressantes e que tem como único e derradeiro prazer reclamar com ele por telefone. Culpando-o por seus problemas que até cinco minutos atrás ele nem sabia que tinham acontecido. Erros que não são dele. Erros para os quais Cristiano foi treinado para desculpar-se em nome da empresa e principalmente diante de seu Deus sobre todas as coisas. O consumidor. Cristiano quer tudo, menos viver para sempre assim, de forma pequena. Com medo de ser demitido e com medo de mudar tudo que parece errado em sua vida.
Ele quer mais. Se ao menos ele fosse livre para escolher.
Irene escolheu a vida que tem, e não se arrepende disso, ao menos, tenta veementemente se convencer disso durante todo o caminho para casa nos últimos anos.
Ela não acha ruim que os homens a vejam apenas como um pedaço de carne saborosa, isso não a incomoda mais. Ela não se importa com a superficialidade excitante da sua aparência, nem se importa em balançar suas vergonhas diante de homens. Não importa a ela ser vista como um corpo. Assim ela estará protegida. Abaixo de todas as camadas iniciais ela estará segura.
Paulo outra vez senta-se em sua mesa no trabalho, sua vida é uma tediosa ausência de desafios e riscos. Ele está tão seguro, que tudo a sua volta tem um sabor chato, amargo.
Todos os dias nessa hora da manhã ele cumpre um ritual, levanta-se da mesa e anda até a cafeteira, adoça um café preto curto, caminha de volta para a sua cadeira e toma devagar, sentado entre os documentos que dez minutos mais tarde irá ler. O serviço mesmo só começa a partir das 10:30 da manhã. Ainda havia muito tempo. Ele aproveitou parte desse tempo, convencendo amigos a ir vê-lo na estreia do espetáculo na próxima semana.
Sentia orgulho disso. Orgulho de ser o ator principal. Gostava da ideia de tantos olhos fascinados por sua figura no palco.
Carolina queria ser invisível, desejava realmente desaparecer. Demorou mas ela finalmente adormeceu. Creio que ela se cansou de ficar acordada sonhando o sonho das outras pessoas. Por isso então ela gostava tanto do teatro. Por isso nunca faltava em um ensaio sequer, para poder viver outras vidas que estivessem certas.
Rodrigo ainda dorme. Se ele acordasse agora e fosse registrar seus textos, se fosse procurar uma editora e vender seus livros. Ele teria um novo emprego. Como escritor e, ao contrário do que ele próprio achava, seus textos eram bons. Eles tocavam as pessoas.
Alcançavam a alma delas.
Ele sonhava sonhos parecidos com os das outras pessoas.
Faltava-lhe apenas fé para acreditar nesses sonhos.
Lúcia ao final do dia estava cansada, tudo se repetiria na manhã seguinte. Isso a cansava.
No caminho de volta para casa, ele relia o texto da peça. Tentava decora-lo enquanto o ônibus ondulava pra lá e pra cá como um bom navio negreiro. Firme, resistente e assassino. O que morria nele eram almas não os corpos.
O pecado de Lúcia era a inveja de tudo o que ela poderia ser.
O pecado dela era ter que vender sua alma todos os meses por um salário de medo.
Ela pensava no filho e tirava forças disso. Ignorando, sempre que possível, o mundo como poderia ter sido. Tentando não ver o sem fim de possibilidades na sua vida se ela pudesse dedicar-se somente a arte. Vendia-se e era uma escolha consciente.
Sonho ou contas. Ideal ou Aluguel. Amor contra comida. Quem sobrevive dificilmente vive.
Não há quem possa julgá-la.
Carmem volta para casa, foi um bom dia. Ela ainda tem algum tempo para estudar suas falas.
Seus pais chegaram do serviço, ela sabe que em mais alguns momentos a briga entre eles começará e provavelmente será iniciada por um motivo simples. O gosto da comida, a posição de uma peça de roupa, um gasto com algo, uma conta e como era bom para ela estar longe de casa nessas horas. Estar no teatro. Com pessoas que pensavam e viam o mundo.
Somente dois anos mais tarde, quando seu pai exigir que ela saia do grupo de teatro, Carmen escolheria sair de casa, para rachar o aluguel com uma amiga.
Seu pai sempre fez questão de salientar que aquela era a casa dele, e enquanto ela vivesse sobre seu teto teria que seguir suas ordens. Tem razão pai. Sempre foi a sua casa, e você nunca fez algo para que eu acreditasse que ela era minha também... Foi o que ela disse ao sair.
Cristiano terminou seu expediente. Era hora de tentar chegar cedo em casa, com sorte tomar um banho rápido e ir direto para o teatro.
Ele sentia-se pronto, ele tinha realmente talento, o dom que torna tudo simples. Desejava tanto o sucesso, a mudança, que faria qualquer coisa para obter isso.
Dois anos e meio mais tarde Cristiano, aceitou dormir com um autor de novela, em troca, ganhou o papel que o levou ao sucesso.
Nunca mais tentou pensar sobre isso, nunca viu o que fez como se estivesse se vendendo, seu corpo, sua alma. Para ele era apenas algo justo. Uma forma de alcançar o que ela dele por direito.
A ira passou.
Irene, depois de dormir bastante, acordou para ir até o ensaio. Enquanto lia o texto da peça tentava imaginar um novo nome. Quando fosse uma atriz conhecida teria que escolher um nome diferente, abandonaria o nome que usava a noite e aquele que usava durante o dia.
E se um dia um escândalo aparecesse nos jornais envolvendo sua vida noturna anterior, ela não negaria nada. Adoraria gerar polêmica, seria uma publicidade fenomenal. Talvez fosse convidada para posar em uma revista masculina, quem sabe teria seu próprio programa infantil depois de um tempo. Não.
Melhor seria um programa durante a tarde de domingo.
E poucos anos depois ela teria tudo isso.
A alma dela, nunca foi tocada. Nunca.
Não foi alcançada ou vista jamais.
Não foi mais amada e nunca se permitiu amar.
E mesmo a própria Irene depois de um tempo tinha dificuldade de vê-la.
Sua alma não foi vendida, nem usada. Simplesmente foi sublimada.
Paulo foi o primeiro chegar e não precisou reler as falas.
Era realmente acreditava que ninguém estava ao lado dele no grupo. Ninguém além do palco e das luzes. Seu pecado era ter certeza absoluta e convicta que se não houvesse aplausos ou plateia a peça perderia seu sentido. Seu maior pecado era ignorar a história e crer quer ela só existe se houver alguém para ouvi-la. Dois anos depois ele abandonou o grupo de teatro.
Divergências criativas.
Mudou de cidade, foi viver no interior do estado. Seus amigos sentiam certa saudade do Paulo.
Carolina, desperta atrasada, toma uma ducha rápida. Olhos ainda vermelhos de tanto chorar. Certifica-se que deixou um maço de cigarros dentro da bolsa antes de sair. O dinheiro trocado para a condução. Não fala com seus pais ao passar pela porta. Isso não é novidade.
Não pensa no que aconteceu na noite anterior. Se pensar vai ser pior e ela sabe disso.
Dois anos mais tarde, ela seria reconhecida como uma das atrizes mais talentosas da sua geração. Os homens jogavam-se a seus pés e ela era vista como uma musa. Para diretores, escritores e fãs.
Uma diva para outras tantas Carolinas que choravam sonhando baixinho, desejando viverem a vida dela. Nunca irei saber se a alma dela mudou.
Rodrigo acordou.
Ele está atrasado. Amanhã vai pensar em uma boa desculpa para não ter ido ao trabalho hoje.
Apenas amanhã. Hoje ele corre para chegar ao ensaio.
Arruma dentro de uma pasta os textos da peça e os seus próprios. São muitas folhas.
Seu pecado é o medo. Medo de acreditar.
Medo de vender sua alma, de um dia acabar tendo que ver suas poesias e contos sendo vendidos como bifes baratos e irreconhecíveis no meio de outras centenas de açougueiros. Medo de ser compreendido. Lido e discutido.
Dois anos depois ele ainda sentiria medo.
Lúcia: “Eu sou o orgulho, eu nunca vou aceitar o que você é.”
Carmem: “Eu sou a inveja, não vejo o que já tenho”
Cristiano: “Eu sou a cobiça, quero tudo o que não mereço.”
Irene: “Eu sou gula, a sensação eterna de insatisfação.”
Paulo: “Eu sou a luxúria, os olhos fechados para a alma”
Carolina: “Eu sou a ira, sou a ausência do pensamento”
Rodrigo: “Eu sou preguiça, eu nunca serei completo.”
O diretor observa seus atores no palco, comenta sobre uma entonação diferente de voz para Paulo e pede um movimento mais agressivo para Carolina. Os demais vão bem.
Ele se coloca como o público, quer acreditar no que vê e olha cada parte para ter certeza que a plateia irá se reconhecer. Ele quer sentir que algo vai mudar na alma do público quando os atores começarem a brincar em cena e com a humanidade das pessoas.
Eles estão prontos. Vai ser uma boa conversa com o público.
Uma conversa entre amigos que não se veem há muito tempo e que nunca antes tiveram chance de falar sobre todas as magníficas qualidades e os mais cruéis detalhes que carregam.
No teatro todas as histórias, todos os atos anônimos e heroicos estão presentes.
Assim como todos os pecados e falhas. Todos os crimes dos homens.
Todos os humanos.
Todos sempre Humanos.
Uma boa troca.
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