O Porco Preto


art by ~yautja


   Não era o estar desempregado que me incomodava, não era a incerteza sobre como ocupar aquele inesperado montante de tempo ocioso entre a hora de acordar e dormir.
    Imagino que um número imenso de pessoas agarra-se aos seus trabalhos simplesmente por não conseguir pensar em respostas para as perguntas que surgem quando se está vadiando livre. Também imagino que, por isso, a contemplação se tornou um hábito démodé.
   Porém, essas angústias existenciais não eram meus problemas imediatos.
   Sendo preciso, somente dois pontos tornavam minha situação insuportável:

O ato de procurar uma nova ocupação e a ausência absoluta de dinheiro.

   Veja, sou sincero ao dizer que nunca fui do tipo materialista, mas... Bem, eu não posso negar que, a despeito do senso comum, felicidade e dinheiro sempre me pareceram bastante ligados, tanto como conceito quanto como fato.
   Claro que acredito que seja fácil e possível ser feliz sem uma bolsa de couro de avestruz de uma grife chique e que custa seu peso em ouro, porém e ao mesmo tempo, acho difícil ficar sorrindo sem grana sequer para uma passagem no dentista quando se tem dor.

   O meu caminho era o do meio.
   Posso lhe dizer que minha modesta medida de necessidade do dinheiro não era tê-lo pelo prazer da ostentação, para roupas caras ou todas as outras merdas, que no fundo eu compraria, não para mim, mas para mostrar para as outras pessoas.
 
   Eu queria dinheiro, apenas e tão somente, para não ter que pensar nele sempre.
   Simples assim, nem um centavo a mais nem um a menos.
   Eu só queria não me preocupar com ele.

   Agora que temos isso claro, havia o segundo problema que mencionei, o terrível ato de procurar emprego. Essa era uma questão bem diferente.
   Já notou como quando se está desempregado todas as matérias nos jornais parecem falar sobre vagas de emprego? Aquelas vagas, para as quais, você não está preparado ou não quer voltar. Aquelas, que se encaixam com todo mundo, menos claro, com você.
   Incomodava-me profundamente todo o ritual; da compra dos jornais nos domingos às entrevistas durante os dias da semana. Detestava as dinâmicas, visto que, não compreendia a utilidade de simular minha presença em alguma ilha deserta contando apenas com uma agulha, uma garrafa de iogurte e duas folhas de papel crepom para sobreviver.

   Por que eu levaria papel crepom para uma ilha? Por que eu estava no avião que caiu na ilha se nem de altura gosto?

   Esse é o sumário das perguntas que me ocorrem enquanto desço lentamente a escadaria de um edifício no centro velho de São Paulo.
   Estou saindo de mais uma dessas fantásticas entrevistas de emprego, até que essa foi interessante, graças a ela saberei o que fazer se um dia o navio, no qual eu estiver, começar a afundar depois de, acidentalmente, colidir com um iceberg e eu puder salvar apenas duas pessoas de um grupo de dezoito.

   Muito útil. Muito útil... Eu escolhi a mocinha bonita e o rapaz que pesava algo em torno de cento e trinta quilos. A examinadora pareceu não gostar muito da minha explicação sobre a razão das opções.

   “A moça é bonita... Quanto ao rapaz, considerando que vou ter só uma agulha, papel crepom e uma garrafa vazia de iogurte para sobreviver na ilha... Bem... Achei melhor garantir uma refeição de emergência... Ele é bem grande afinal. Canibalismo nesses casos é uma opção razoável.”
   Eu estava sorrindo quando terminei de falar. Houve um silêncio prolongado na sala e o rapaz, sobre o qual falei, discretamente, se afastou uns dois passos de onde eu estava.
   Acho que finalmente esse foi o meu ponto de quebra.

   Desci os onze andares do prédio onde ficava a agência de empregos pelas escadas, talvez por uma parte minha achar que eu não merecia o conforto de um elevador. Quando estava perto do térreo, contei o dinheiro que ainda tinha nos bolsos: duas notas de cinco, duas moedas de vinte e cinco.
   Ao passar pela recepção e chegar na rua percebi que aquele era todo o meu orçamento para o restante do mês. Fui me sentar em um banco, em uma rua próxima ao Teatro Municipal, era um dia bem quente e eu achei melhor saborear meus dissabores ali mesmo antes de ir embora. Cogitei tomar um sorvete, daqueles de máquina, inevitavelmente cercado por abelhas desgarradas e vendido ao lado de um churrasco grego, mas desisti da ideia.
   Era melhor economizar... Queria apenas não pensar nisso sempre.
   Que merda de vida.
   Estava com a cabeça baixa olhando para meus sapatos, não por me sentir triste, mas porque o laço de um deles tinha sido desfeito e eu precisava amarrá-lo, foi então que, ao levantar a cabeça, reparei na loja de R$1,99 e no vagalhão de itens fuleiros dispostos caoticamente na vitrine.
   Uma miríade de objetos diferentes, entre garrafas plásticas, bolas, bonecas mal feitas, galinhas de cerâmica, talheres, pelúcias, cadernos, panelas, quadros e o que mais você conseguir encontrar em um dicionário. Foi nesse mar de inutilidades que um item em específico chamou minha atenção, por alguma razão indecifrável, fiquei hipnotizado pela imagem de um cofrinho.
   Um porco preto de plástico. Um porco preto sabe? Do tipo bem barato, de plástico igualmente barato, mergulhado entre outros gêmeos idênticos em uma das gôndolas. A única real diferença entre ele e os demais era a cor.
   Enquanto os outros se dividiam em amarelos aguados, azuis suaves e verdes bonitinhos, o porco que me olhava era totalmente preto. Feito carvão, preto quase fosco. Redondo e sorridente.
  Preto e altivo.

   Eu levantei e caminhei até a loja, direto na direção daquele exótico item. Puxei-o da multidão e passei um ou dois minutos examinando sua figura. Tateando as imperfeições no plástico de linha de produção e encarando aquele sorriso enigmático de Monalisa. Colado nas suas costas havia a etiqueta indicando o preço, nada mais do que duas moedas, e o nome do fabricante “Brinquedos Encantados”.
   Pode chamar isso de revelação, insight ou destino mas algo me disse para comprá-lo. Passei pelo caixa, paguei e imediatamente coloquei o porco preto dentro da bolsa que trazia comigo, assumindo meu papel de dono e proprietário.

   Dez ou doze segundos depois o telefone no meu bolso tocou, era da agência de empregos, aparentemente eles tinham gostado do meu perfil “ousado e assertivo”. Eu estava empregado eles diziam. A vaga era minha.
   Demorei um ou dois segundos pensando antes de dizer algo.

   Eu agradeci a ligação, porém, disse que tinha recebido outra oferta melhor...
   Depois de desligar abri minha bolsa, olhei para dentro dela procurando por meu MacGuffin, meu adorado Téksmanta, meu novo amuleto.

   O porco preto estava ali, como se aquele fosse seu real lugar, olhando para mim e sorrindo.
   Eu pensava nele, não mais no dinheiro.

   Fomos juntos até a máquina de sorvete para fazer nosso pedido... Quem sabe também não pegasse um churrasco para acompanhar. A vida ia melhorar.

   Tinha comigo a sensação inabalável que grandes coisas ainda estavam reservadas para nós dois.
   Nós...

   O porco preto e eu.




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Comentários

H-Minus disse…
Éeééé...é...é,né! Hnnnnnp...é...né o_0