Dinossauros e Pêssegos


art by Giuseppe Reichmuth - Dinosaurier auf der autobahn 1980


Os primeiros dias de Abril sempre parecem confusos, com uma sensação constante de começo e, ao mesmo tempo, fim.
Durante todo dia o calor foi pesado e agora, que começava a anoitecer, havia um céu cinza chumbo, nuvens e um vento frio de chuva vindo em ondas. A casa já estava fechada, preparada para o temporal, janelas e portas trancadas e as luzes ligadas.
 Aquele era um lugar amplo, com dois andares e teto de telhas, construído em uma cidade pequena no interior do estado.
 Uma casa comum de campo, feita para ser simples por fora e cheia de detalhes por dentro, barroca inconscientemente, cheia de lembranças desconexas. Não havia uma relação imediata entre o relicário e o jogo de chá holandês, ou entre as peças de xadrez e a panela de ferro, mas cada um tinha seu mérito e merecia estar visível, ao menos, segundo os critérios duvidosos da dona da casa.
O rádio ligado em cima da mesa da sala servia apenas para ocupar o ruído vazio de fundo.
 A televisão desligada, uma daquelas antigas e pesadas com seletor de canais e caixa de madeira em volta do tubo, ficava estacionada perto de um aquário que parecia vazio mas escondia dois peixes dourados.
Você veria nas paredes quadros com paisagens igualmente conflitantes, iam de uma bucólica colina outonal até um Reichmuth com aquele dinossauro imenso, parado no meio do trânsito, em uma rodovia expressa.
A dona dessa improvável galeria e única moradora da casa chamava-se Cecília e já não reparava mais nos quadros, ou na organização lógica dos objetos, ela apenas vivia ali, sem alterar muito o cenário, como se essa fosse uma decisão que devesse tomar somente com seu falecido esposo e na ausência dele, parecia injusto mudar algo.
Hoje era um dia atípico na estática rotina, havia uma visita, sua irmã Clarice tinha vindo da capital para passar alguns dias, queria descansar e mudar a rotina de Cecília, que normalmente, só conversava com os homens invisíveis no rádio e com os peixes.
Duas senhoras com quase sessenta anos, uma de cabelos grisalhos e outra com os cabelos tingidos de uma cor no caminho entre laranja e cobre.
“Aceita pêssegos em calda Cris?”

“Eles já estão gelados?”

“Sim, desde ontem e eu nem abri ainda a lata. Vamos na cozinha, vou pegar duas taças.”

“Eu gosto deles assim, não ficam tão doces. Lembra como essas latas de pêssego costumavam a ser caras?”

“Claro que lembro, com aqueles anúncios de página inteira na Life e na Cruzeiro. A coisa mais fina da época e com um “sabor rico” como diziam.”

“Nossa... Nós estamos velhas.”

“Estamos. Eu não fico muito preocupada com isso sabia? Não é envelhecer que me incomoda é estar errada.”

“Errada como?”

“Errada... Porque é isso que o tempo faz com as pessoas, prova que elas estão erradas. Antes de tomar sorvete eu achava pêssegos em calda a maior invenção do universo e eu estava errada. Eu fico pensando sobre quais outras coisas ainda vou descobrir estar errada e, em quais outras, nem vou saber que errei.”

“As coisas sempre mudam Cecília.”

“Eu sei, mas o problema é a gente se apegar ao presente como se ele estivesse mesmo correto. Ter certeza de algo é a sensação mais reconfortante que conheci, não há dúvidas, perguntas ou lacunas. Só uma certeza infinita e inquestionável, e isso é um mar de calma mesmo que tudo esteja errado.”

“Estamos falando de religião?”

“Não... Claro que não. Ao menos acho que não.”

“As coisas sempre mudam. Isso é normal. Lembra como era errado mulheres se divorciarem? E antes disso era errado não casarem. Não casar virgem. Votar. Andar sozinha em público... Hoje essas proibições, que eram normais, são erradas e é isso. Sempre há o dia seguinte e ele muda as coisas, mesmo que a gente não fique aqui para ver, será um dia diferente. A Terra era plana antes... Lembra?”

“Daqui uns cinquenta anos quase tudo que a gente vê como normal vai ser visto como algo atrasado, primitivo e impensável.
Confesso que não queria que os filhos dos filhos dos meus netos me vissem assim... Como mais uma no meio daquela multidão de gente estranha e primitiva, de pessoas que para eles parecerão ser incrivelmente atrasadas e limitadas. Eles vão rir e vão se perguntar como a gente aceitava essas coisas.... Credo. Eles vão rir da gente no futuro.”

“E os netos dos netos deles, algum dia, também olharão para a época deles e vão pensar:
... Como foi afinal que esses idiotas sobreviveram?... Nós, nossos netos e quem vier depois, sempre vai ser devorado pelo tempo Cecília.
Então... Tem creme de leite? Gosto do pêssego com creme de leite.”

Elas se sentaram na cozinha, com suas taças.
O creme de leite tinha acabado.

As duas irmãs decidiram tomar sorvete de chocolate.
Sem dúvida alguma a maior invenção do universo.




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