Entre Nihil





A sua volta existia toda aquela combinação improvável de sensações.
Ele percebia as roupas e as diferentes texturas, dispostas em camadas e, por isso, quase intangíveis.
Era um cenário alheio ao tempo. Não neutro, mas sem dúvida, separado.
Havia a gravidade balanceada entre os diferentes objetos.
Mesa, sofá, abajur, a televisão desligada, os livros, cada um desses dividia o mesmo ponto de fuga comum, rodeando-o calados com exceção do rádio que tocava baixo “Alma Matters”.
Talvez por compreenderem que somente existiam porque ele estava ali para vê-los e pensar sobre eles.
Cada item com uma história distinta, mas todos, dedicados a montar um plano de fundo.
Algo concreto para opor-se a ausência da figura dele.
Ao nada no qual ele buscava mergulhar seus pensamentos. Não o vazio, mas o nada que indica completude e imensidão. O nada que se sente diante do que não tem fim.

Uma das mãos apoiava-se no cachorro sentado próximo.
Ele não percebia o olhar, mas sentia a presença de outra criatura viva, isso bastava para ancorar o mergulho e servir como linha guia na eventualidade de voltar à superfície.
A outra tocava as letras afastadas na página e as fotos, para sentir e tentar aceitar a destruição iminente diante de outros universos. Esse sabor era o melhor dos livros.
Nunca era o mesmo gosto.
Podia ser perplexidade, angústia, prazer e fúria.
Mas nunca era o mesmo vazio.

Havia sempre um mundo diferente.
Um Caronte novo, esperando por ele.
Conduzindo-o de Nihil em Nihil.
Que para ser visto exigia desapego e a coragem de se desfazer, desmembrar e diluir em nível atômico. Ele, ao deixar de ser, assim como tão poucas e essenciais pessoas na vida, tinha a esperança de começar a existir.

“Você vem Ninil?” A voz vinha invisível, de outro cômodo, chamando-o para sair.
Ele voltou do indecifrável, como quem adormece e fecha os olhos.
Passou a mão nas costas do cão agradecendo a companhia e o caminho.
Levantou-se carregando o livro, com a página marcada entre os dedos, mesmo sabendo que não iria continuar lendo. Devolveu aquelas palavras para a companhia dos outros universos na estante.

“Eu vou.” Disse caminhando para o rádio. Quando preparava-se para desligá-lo começou a tocar começou a tocar “Fly Farm Blues”.

Sentiu pena de interromper a guitarra solitária e ficou mais algum tempo entre universos.
Existindo entre o nada.
Entre as linhas.




...

Comentários

Miroca disse…
Tenho orgulho de ser amigas de vcs dois viu! Sorte a minha por ter compartilhado pequenas e grandes coisas com mentes tão inquietas, pulsantes e pensantes como a de vcs. Esse é nosso Zé...nosso Moa. Amei esse texto!