Coveiro


Descobri hoje que o passado nada mais é do que uma história de um livro corroído pelas traças fedendo a mofo.

 Ele está escrito em uma língua que não me pertence mais.
 Tem histórias daquelas que todo mundo já conhece ou ouviu uma versão diferente e não importa mais qual é a verdadeira. 

Meu passado é assim. 

Não importa mais quem foram os vilões ou mocinhos.
Importa o que me tornaram.
Importa o que me tornei.
Meu próprio aliado. 

A cada punhado de terra que tiro penso, aliviado, no que foi embora. E o que importa agora, é essa pá onde apóio meus braços.
Tenho um dia inteiro de trabalho pela frente, mas não me importo.
Não me importo que ainda se remexa um pouco, não tenho pena de ter ainda algum pedaço vivo.
Em mim, nada vive mais.
Estranho como sinto mais prazer no que imaginei que fosse me matar do que no que achei que fosse me fazer viver.
Ah... A desilusão é uma bela companheira. Uma das melhores amantes que já tive.
Com ela, aprendi a relembrar sem mágoa de cada perda. Afinal, nunca fui vítima, nem culpado... As coisas são o que são afinal, e nunca são o que imaginamos que seja.
Nunca pensei ter que enterrar alguém com quem já dividi a minha cama. Nunca pensei que sentiria tanto prazer nisso. 

Todos mudam.
Talvez não de verdade, somente na nossa cabeça. Na nossa cabeça, um dia, reconhecemos dentro de nós tudo o que criamos.
O outro não passa sempre de uma criação, de uma invenção.
Pausa para mais um gosto amargo na boca.
O uísque alivia essa sensação de sempre estar com a boca seca, e alivia o cansaço.
Já estou todo sujo de terra e ainda não parece fundo o suficiente. Fundo para abrigar mais um punhado de alguém.
A cada vez que volto aqui imagino que vai ser a última.
Nunca é.
Mas o cansaço me deixa aliviado. Com o alívio dos justos. Como é leve não ter que ser bom para quem não merece. Como é belo se libertar da culpa de não ter vivido a história certa, porque ela nunca existiu.
Pessoas são só pessoas.
E às vezes são um punhado de merda embebidos em champagne e diamantes.
Mais um punhado de terra e basta. Basta para aliviar esse peso dos ombros, este último peso dos ombros. Esse com quem dividi algumas noites, com quem dividi muitos pensamentos e sonhos.
Mais uísque. E agora minha pá para cobrir o passado e não permitir que deixe vestígios.
Rezo um pai nosso. Menos pelo passado que descansa em paz agora e mais por mim, que fui outra pessoa tantas vezes quando podia só ter sido eu.
Deixo uma flor dessa vez?
Não. Porque não importa mais.
Não me importa mais.
Mas, só pra facilitar, cavo outra cova antes de ir embora, receio ter que voltar aqui mais algumas vezes até minha morte.

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