O Efeito Hidra

art by ~hipnoptico



Eu nunca me julguei especial ou diferente, sou somente um homem comum, funcionário público, trabalho como assistente pessoal no palácio do governo.
Este é um delicado eufemismo para a palavra mordomo, ao menos, essa versão dos fatos me coloca em igualdade com embaixadores, delegados e ministros.
Todos nós, afinal, somos funcionários públicos.
Meu salário não é dos piores, claro que não chega sequer perto dos outros cargos mencionados, mas é o suficiente para um homem solteiro e com gastos modestos como eu. Minhas únicas extravagâncias são creme de amendoim, o qual, conservo sempre disponível para o café da manhã e ração para rãs.

Eu não como a ração, claro, apenas o creme, mas ela é útil já que mantenho um número limitado de aquaterrários em meu apartamento e crio neles um pequeno grupo de anfíbios tropicais. Eles são silenciosos, não incomodam os vizinhos. É prático.
Além disso, gosto das cores exóticas. Vermelhos, azuis, amarelos. Sempre cores intensas.

Como pode ver, são prazeres pequenos e moderados, então meu salário é capaz de suprir essas distrações com boa folga. É um bom emprego.
Não me importo se tudo o que faço é organizar diferentes tipos de pratos, mesas, talheres e copos. Eu trabalho, tenho propósito e há uma tranquilidade bovina em saber perfeitamente minha posição nesse mundo.
É especialmente agradável a sensação suave da inércia me conduzindo. 
Não precisarei lutar para subir ou para evitar a descida, apenas tenho que continuar indo.

O auge palpitante das minhas inquietações filosóficas limita-se a saber se os copos de vodka estarão suficientemente gelados ao serem servidos para o primeiro ministro, quando este, solicitá-los.

Já são quase vinte anos servindo vodka para ele, todas as tardes religiosamente, dois copos grandes e frios.

O primeiro ministro é um homem metódico, a bebida precisa estar em exatos 20ºC negativos e sempre a mesma marca, filtrada impecáveis seis vezes. Ele não gostava de ser incomodado ao beber.
Era um ritual silencioso, quase contemplativo, segundo suas próprias palavras havia algo civilizador e europeu na vodka gelada e não seria eu a discordar de suas preferências. Ninguém discorda dele. Nunca.

Ele já está no poder há três décadas, antes dele havia sido seu pai a ocupar o cargo e antes deste seu avô, governar era um negócio de família compreende? Algo de sangue.
Era prática comum passar os cargos de uma geração para outra, quase como um dote ou herança, no outro extremo da corda, cabia ao povo ser grato pela oportunidade de ser guiado por mãos tão capacitadas a lidar com o peso do poder.
Algum dos países vizinhos ou a ONU, de tempos em tempos, se incomodava com essa prática.
Agindo com magnânima sabedoria nosso governo, nessas raras ocasiões, esperava diplomaticamente o incômodo alheio passar e prosseguia.

Esse é um país pequeno, sem petróleo, sem pandas para salvar ou minas de platina. Só um monte de pessoas...É fácil esquecer nossa presença no tabuleiro de países.
Difícil é lidar com as pessoas, elas são um material com pouco valor econômico e infelizmente extremamente volátil.

Três semanas atrás o caráter instável e insensato da população, levou o primeiro ministro a autorizar o uso de tanques e aviões de guerra para bombardear bairros inteiros. Uma medida educativa para conter os revoltosos espalhados em todo país.

Tudo muito bem planejado por nossos generais e executado cirurgicamente por nossas forças de segurança.

Escuto a sineta tocar na cozinha e sei que devo subir com o copo de vodka para meu caro líder. Retiro a garrafa da geladeira, seu conteúdo está cremoso, frio e transparente. Quando jogo-o no copo forma-se um fio translúcido de bebida.
Organizo a bandeja, deixando sobre ela apenas os copos e um guardanapo branco. Subo até o salão principal, não cheguei a comentar como gosto de toda decoração do prédio, os móveis folhados e as pinturas imensas.

No caminho, talvez por ver as austeras figuras de generais e familiares do primeiro ministro estampadas nos quadros, não consigo deixar de pensar em como a força é ineficaz contra as ideias.
Não apenas por elas serem conceitos abstratos, sem um corpo para ser colocado em vala comum, mas também, por elas serem contagiosas. Isso é terrível.
Você pode matar os primeiros rebeldes, isso não é complicado, mas cada um deles possui sua própria história. Eles tinham mães, tinham irmãos. Filhos e esposas.
Cada um deles era, por definição, é uma pequena multidão.

Você cala um pai e, no dia seguinte, vai ouvir um de seus filhos.
Você silencia um filho, e logo vai dar voz para um irmão ou mãe.
É o efeito hidra. Corte uma cabeça e outras duas tomarão seu lugar.

Ao chegar à sala esses devaneios desaparecem, concentro-me em não fazer muito barulho, como sempre. Deixo o copo na mesa do primeiro ministro e saio. Como sempre.

Do palácio do governo até a fronteira mais próxima são quarenta minutos, ninguém vai pensar em incomodar o primeiro ministro nessas próximas três ou quatro horas.

Minhas malas já estão no carro, junto com três aquaterrários e o dinheiro que guardava para minha aposentadoria. Preciso lembrar-me de comprar algumas garrafas de água para a viagem e dirigir devagar. Quero me lembrar da paisagem antes de sair do país.
Os copos de vodka, que servi hoje, foram banhados em uma dose generosa de batracotoxina da rã Phyllobates Terribilis. Em termos leigos: veneno.

Cada único exemplar desse animal carrega veneno capaz de matar aproximadamente mil e quatrocentos seres humanos.
A Phyllobates tem uma cor linda e uma natureza delicada. Meu irmão nunca reparou muito nesses pormenores quando ia em casa me visitar.

Ele, a esposa e os dois filhos morreram há cinco dias, durante um dos bombardeios cirúrgicos do governo. 

As crianças tinham doze e sete anos. Todos estavam em casa vendo televisão.

Caminho até meu carro, passo pela garagem, digo bom final de tarde para o vigia antes de entrar na rodovia.
Há um pequeno sapinho de plástico preso ao retrovisor. Ele está sorrindo.
Estranha hora para lembrar, mas é interessante pensar que nem meu irmão, nem eu, éramos a favor da revolução ou das mudanças. Ao menos até cinco dias atrás.

Admito que se meu irmão tivesse apenas saído para jantar com a família naquele fatídico dia, se eles tivessem escapado ilesos das bombas, talvez, nada mudasse e amanhã eu estaria pensando nos copos, rações e nos meus potes de pasta de amendoim.
E seria feliz com isso.

Creio que esse é o lado mais perigoso de uma ideia. Ela é capaz de mudar você.
Antes que perceba e quando menos espera.

Elas são como hidras.

Bem... Ao menos dessa vez, eles poderão dizer que o culpado foi o mordomo.





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