Onze de Junho.


photo movie Coffee and Cigarettes


O vento é o ar em movimento.
Não sei exatamente por qual razão isso me ocorre agora. Apenas lembro.
Talvez tenha sido a interação cinética entre os trilhos e as rodas do metrô, que me deixou desorientado. É um tipo de vibração baixa, hipnótica, que faz você questionar suas percepções. Depois de algum tempo não dá para saber se você está movendo-se lentamente ou se está estático, inerte, só que em um ritmo cada vez mais rápido.

Por isso, é melhor aceitar que você apenas está.
Eu, por exemplo, estou.
Para ser preciso, na linha verde do metrô, tive que passar antes pela amarela e a azul.
É um dia cinza.
Minhas roupas são pretas.
A cerveja que vou tomar tem um tom avermelhado parecido com cobre por causa da fermentação.
O gosto é macio, embora desprovido de cor, não chega a ser invisível.
Ele é só passageiro, por isso preciso reviver a experiência, beber novamente para lembrar como é o sabor.
Olho para meu reflexo na porta do vagão.
Não chega a ser invisível.
Ele também olha para mim. Não sei qual seu sabor.

Ele é só passageiro.
Estou atrasado, claro, mas o fato de chegar sempre trinta minutos depois em qualquer compromisso deveria tornar-me a pessoa mais pontual do mundo.
Então não me culpe, dependendo do ponto de vista, sou um relógio.
Saio do vagão na estação Brigadeiro, por causa do horário, o lugar está vazio e silencioso, as pessoas de bem estão trabalhando durante a tarde. Abençoadas sejam.

Vou para as escadas rolantes onde permaneço imóvel, sendo conduzido para fora da caverna, não faço esforço ou tento subir os degraus. As escadas tem esse nome por uma razão e não seria justo alterar a perfeição da ideia original.
Estou na Paulista, simplesmente adoro esse clima europeu, eclético e hipster, mesmo sendo falso e frágil. Eu gosto, afinal, “I'm a man of wealth and taste”.
Gosto de como as coisas são aqui, ou na verdade, como elas tentar ser.

As coisas aqui parecem ser.
Não são, mas parecem, e fazem isso com muita precisão.
Enquanto caminho por uma calçada limpa, ao ponto de poder ser considerada esterilizada, lembro que, não muito longe daqui, em um dos bairros periféricos uma dona Maria das Couves Qualquer da Silva não conseguiu novamente marcar uma consulta para seu filho de quatro anos porque não havia um único pediatra no posto de saúde que atende o bairro.
Ela vai tentar amanhã, e claro, não irá conseguir novamente.

Como disse; gosto daqui.
Dessas calçadas imaculadas e de como as coisas tentam, veementemente, ser.

Quando encontro meu amigo, em uma cervejaria, ele está acompanhado por um copo de água com gás, gentileza dele não começar a beber sem minha companhia.
“Feliz aniversário... Seja lá o que isso venha a ser. Para quem está ficando mais perto da morte você me parece bem.”

“Obrigado.”

“De nada, sabe que eu vim pela bebida não é?”

“Sei, mas podemos fingir que foi pela amizade. Trouxe algum presente?”

“Não. É difícil encontrar algo para alguém que parece que já tem tudo.”

“Eu?”

“É... E não use do sorrisinho cínico. Grana, carro, solteiro... E você não tem quatro braços ou duas cabeças, fato que, torna-o aceitável para 97% das mulheres do mundo.”

“E os 3% que sobram?”

“Elas tem gostos estranhos... Vai por mim, melhor não tentar.”

“Amigos dão presentes, não dão?”

“Amigos de verdade estão presentes e mandam você se foder quando pede um presente. Essa é a diferença. O que vamos beber? Eu vou pedir aquela taça gigante de cerveja de trigo e você?”

“Uma guinness.”

“A ressaca é sua... O segredo da guinness é que ela é feita com água do pântano, urina de leprechaun e chocolate. Por isso o gosto é bom, não faz sentido, mas é bom.”

“Que absurdo.”

“E como vão as coisas?”

“Na mesma e com você?”

“Iguais... Nossas vidas andam emocionantes não é?”

“É.”

O garçom se aproxima, ele não olha e nem vai se lembrar de nós, e nós, não olhamos e nem nos lembraremos dele e, mesmo assim, o milagre da comunicação ocorre.

“Uma erdinger.”

“Pra mim, aquele copo gigante de chopp de trigo, sabe qual é? Eu quero um desses.”

O garçom se vai.

“Você não ia pedir a guinness?”

“Ia... Mudei de ideia.”

O garçom volta.
As cervejas são servidas.
O garçom se vai.
Como se nunca tivesse existido.

Eu não digo nada. Meu amigo também permanece quieto.
“E a que vamos beber hoje?”

“Ao meu aniversário.”

“Não... Eu falo de coisas importantes.”

“Saúde, dinheiro e mulheres...”

“Importantes e filosoficamente profundas... Um brinde aos rinocerontes pigmeus, vou sentir falta deles quando se forem.”

“Aos rinocerontes...”
O primeiro gole, da boca para o coração e pulmões, me faz lembrar que vivemos e bebemos como árvores secas. Acredito que ambos, eu e meu amigo, temos essa percepção, por isso ficamos em silêncio alguns segundos depois de baixarmos os copos na mesa.
Tentamos lembrar como é estar vivo.

“Vai sair para comemorar seu aniversário mais tarde?”

“Sim e beber até cair.”

“Moderado como sempre... Eu gostaria de estar lá mas preciso voltar pra casa.”

“Não é fácil viver como um homem sério?”

“Mantenha só o começo da frase. Não é fácil viver. Você fez trinta não é?”

“É... E agora?”

“Eu não sei. É só uma data e o tempo é relativo no final... Além disso, é você que está fazendo aniversário. O inferno astral e as questões existenciais são todas suas.”

“Muito obrigado. Animador você.”

“Não me culpe, não sou o roteirista dessa história, sou apenas um dos anônimos na plateia, mas se quer mesmo saber, não é complicado prever o futuro próximo. Nós vamos beber e então, como qualquer um, iremos começar a discutir os mais variados temas, de mulheres à corridas de cavalo, e daremos profundidade filosófica  para esses assuntos.
Por mais rasos e superficiais que pareçam ser.
Vamos falar sobre coisas que não lembraremos depois, vamos defender nossas opiniões como se elas tivessem valor, vamos dar algumas risadas e lembrar de pessoas que não estão aqui, sentadas em nossa mesa.
O passado nos parecerá brilhante, mesmo que não tenha sido.
O futuro nos parecerá incerto e assustador, mesmo que não venha a ser.
Vamos beber por aqueles que não estão aqui e por aqueles que ainda vão chegar e, em um determinado momento, vou lembra-lo que você é um bom amigo e que sempre pode ir mais longe, porque a vida, assim como o vento, só acontece em movimento.
Ah sim, antes de irmos embora, quando você estiver sensibilizado por essas palavras, vou pedir para que pague a conta. Sabe como é, estou com poucos recursos no momento.”

“... Você sempre está com poucos recursos.”

“Aproveitando que mencionou isso, acha que pode me dar uma carona? Não queria pegar o metrô no horário de pico.”

“...Pensei que era o meu aniversário e não o seu.”

“Ora... É pra isso que servem os amigos.
E já que tocou no assunto, feliz aniversário meu velho. Cheers.”

“Cheers mate.”






Moacir Novaes
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