A hora morta


art by ~Droxiav




Estou no escritório e este é exatamente um dos detalhes que mais me incomoda.
Eu não caminhava por uma rua deserta ou perambulava no campo. Era um escritório, dentro de uma das partes mais movimentadas de São Paulo, no vigésimo segundo andar de um prédio comercial. Um lugar normal.
O relógio em cima da minha mesa marcava três horas e trinta e três minutos.
Havia uma boa razão para estar até tarde no serviço, eu precisava terminar alguns relatórios atrasados para o dia seguinte, serviço chato e normalmente nem sou pago por ele, na melhor das hipóteses, receberia uma folga para compensar as horas adicionais de trabalho.
O prédio inteiro estava vazio, por causa do horário, até mesmo o pessoal da faxina já tinha ido embora para casa. No térreo você encontraria dois seguranças, um deles, certamente, dormindo. Não posso culpá-lo, a cidade inteira está dormindo, e não há muito pra se fazer em uma noite de segunda.

No meu andar você veria apenas alguns poucos monitores ligados, reproduzindo testes de sistema ou processando dados, e quase todas as luzes apagadas.
 Eu já tinha feito minha parte e estava me preparando para ir embora, lembro de ter pego as chaves do carro em minha mesa, levantar e ir na direção do elevador.
Apertei o botão chamando-o e voltei para beber água. Minha garganta estava seca
A empresa tinha um daqueles bebedouros modernosos que só faltavam conversar com você sobre filosofia. Ele fazia um zunido rápido e baixo depois de acionado, era o barulho da água sendo empurrada pelo sistema de filtros.

O copo ficou cheio, eu o peguei e já estava tomando a água quando notei que o zunido não tinha parado, cheguei a olhar para o bebedouro antes de perceber que o som vinha de outra direção, do lado de fora do prédio.
Uma das janelas estava aberta e deixava aquela vibração aguda passar.

Caminhei até o vidro... Levou algum tempo para montar a cena toda, era estranho, como se conscientemente meu cérebro estivesse se recusando a encaixar as partes.
Carros parados, outros prédios com suas luzes apagadas, uma caçamba de lixo, as árvores na calçada, foi isso que vi nos primeiros segundos... Eu não notei a presença dele, como disse, levou tempo para montar todas as peças, no começo era como se ele não estivesse lá.
Para ser mais exato... Era como se não pudesse estar.
Foi um movimento de seus braços que me fez notá-lo.
Gostaria de dizer que o que vi era uma pessoa, lá fora parada no meio da noite, mas não era. Parecia um homem muito alto, sem cabelos, sem um rosto que eu pudesse ver... Era algo somente parecido como uma pessoa entende? Mas, ao mesmo tempo, era como ver uma foto e não um corpo sólido. Aquilo, seja lá o que for, se movia como uma imagem projetada no chão da rua. Tinha um jeito perturbador de caminhar, estava olhando-o fixamente, sem sequer piscar e a impressão que eu tive era que eu perdia algumas partes das ações dele, quase como se estivesse vendo um filme com sequências inteiras faltando.
Ele não era linear ao se mover, para ser preciso, em alguns momentos parecia que aquilo deixava de estar ali diante dos meus olhos e, depois de alguns instantes, voltava a aparecer.
Tive a imediata sensação de repulsa, quase culpa.
Não deveria ver aquilo. Simples assim. Eu senti que não deveria ter visto aquilo.
A coisa toda durou alguns poucos segundos, ele atravessou a rua, muito rápido até estar próximo a um dos prédios residenciais, o mais baixo e antigo deles, e então abriu os braços esticando o corpo e seus membros. Não havia som algum acompanhando os movimentos.
Sem qualquer esforço aquela coisa começou a escalar a lateral do prédio, até alcançar o topo e sumir. Eram pelo menos cinco ou seis andares.

Acho que você pode chamar o que eu senti no minuto seguinte de medo, porque não consegui me mover. O som da sineta do elevador tocou. Cheguei a cogitar voltar para minha mesa e ficar sentado nela até amanhecer, mas uma necessidade mais forte e primitiva me mandava sair daquele lugar o mais rápido possível.
Eu entrei no elevador e nessa hora realmente fiquei em pânico por pensar que poderia não estar sozinho ali ou imaginar se aquela coisa seria capaz de alcançar outros andares de um prédio mais alto como o meu.
A descida durou uma eternidade.
Quando finalmente cheguei ao térreo e as portas se abriram eu estava ofegante, com os olhos escancarados. Vi os dois vigias na recepção, eles estavam assistindo um filme em uma televisão pequena. Pensei em parar para falar com eles, perguntar se tinham ao menos ouvido algo... No meio do caminho, até onde eles estavam, fiquei imaginando como eu reagiria se alguém me contasse uma história parecida.

“Bom descanso para vocês...” Isso foi tudo o que eu disse e acho foi melhor assim.

Meu carro estava logo na frente do prédio, entrei nele e por pura paranoia, ou talvez por anos vendo filmes de terror, lembrei de olhar o banco de trás para me certificar que nada ia pular sobre mim quando começasse a dirigir.
A cidade estava vazia, faltava pouco para as quatro da manhã. Estava um pouco mais calmo dentro da minha bolha de metal e por estar em movimento. No caminho para casa o medo cedeu espaço para uma curiosidade mórbida, quando cheguei no meu apartamento fiz três coisas. A primeira foi acender todas as luzes, a segunda ver se as janelas estavam trancadas e a terceira foi ligar o computador.
São quase seis horas da manhã. Estou escrevendo isso para ter certeza que não tive uma alucinação ou coisa do tipo, quero manter algum registro dos detalhes.
Não vou ao trabalho hoje, dor de cabeça, alguém na família doente, penso em uma desculpa depois, mas não vou ao trabalho. Passei as últimas horas pesquisando sobre o que eu tinha visto.
Encontrei algumas poucas referências, relatos e lendas urbanas de outras pessoas que tinham visto algo semelhante. Elas chamavam aquela coisa de o cavalheiro alto, “the tall gentleman”, o nome não devia-se apenas por causa do formato do seu corpo, mas também porque ele não deixava rastros ou sons. Quase todas as histórias vinham de sites estrangeiros e em países diferentes... Havia uma infinidade de teorias conspiratórias, quânticas e místicas que tentavam explicar suas aparições, e quase todas elas me pareciam igualmente perdidas, superficiais ou escritas por garotos de onze anos.  Desliguei o computador pouco depois das sete da manhã.
O dia estava claro, mesmo com as cortinas era possível ver a luz entrando na sala e quarto.
Se eu estivesse em um filme de terror, eu veria, nesse momento, a silhueta daquela coisa bem ali, dependurada do lado de fora do meu apartamento, em plena luz do dia, esperando para me pegar.
A curiosidade me levaria a abrir as cortinas, porque eu precisaria saber, precisaria ter certeza...

Foi exatamente esse pensamento que me fez desviar o olhar das janelas e das cortinas, como se elas não existissem e caminhar até meu quarto para ir deitar com as luzes ligadas e a porta fechada. Parecia um lugar seguro para dormir.

Sabe... Eu gostaria de tirar de toda essa experiência alguma transformação transcendental ou espiritualizada, alguma lição moral transformadora ou construtiva.
Porém, tudo o que sei e que consigo pensar, é que o pessoal da empresa vai precisar encontrar outra pessoa para trabalhar de madrugada.


 ...

Comentários

Amanda disse…
Essa história ficou fantástica. Desculpa mas, não sei se aconteceu realmente ou se você a escreveu mas, eu adorei. O modo que você contou os detalhes ficou perfeito. Estava lendo e eu não consegui desviar os olhos enquanto não terminei. Quando você começou a falar como era a criatura que havia visto, a primeira coisa que pensei foi Slenderman rs. Você escreve muito bem!