O Sorriso do Lagarto


art by *MarieBergeron



Caminhava pela sala.

Em determinado momento.

Entre movimentos.
Antes que pudesse realmente notar ou decidir.
Me vi parado diante da televisão.
Estático.
No vão.
No meio do caminho.
Entre o que pretendia fazer e o nada anterior.
Não foi por uma voz.
Nem alguma cena.
Não por um homem que flutuasse.
Ou por um avião que se chocasse.
Afinal.
Após anos de exposição diária.
Tornados, enchentes, terremotos e execuções sumárias.
Pandemias, fome e guerras, agora, me pareciam desgraças inevitáveis.
Quase obrigatórias.
Necessárias.

Elas me tornaram razoavelmente insensível.

É difícil.
Encontrar o que me consterne.
Consuma ou dilua.
Mais raro ainda o que me surpreenda.
O cidadão mediano já está imunizado para quase todos os males humanos.
Apreenda nosso engano.
Por isso, posso garantir, o que me fez parar não foi qualquer grande fenômeno exótico.
Eu parei para ver o sorriso de um homem.
Aparentemente religioso.
Correto.
Pródigo.

De um único tom.


Monocórdico.


Ele, o homem com camisa clara e mangas arregaçadas, era um dos candidatos ao cargo de prefeito.
Havia, claramente, sido esculpido por alguém para parecer ser.
Perfeito.

Não que isso tivesse alguma importância.
O que me deteve não foram suas falsas qualidades divinas ou messiânicas.

Foi seu sorriso.
Cínico.
Levemente reptílico.

Não havia um discurso elaborado ou uma dialética inflamada.
Ele apenas olhava.
Como se também pudesse me ver parado.
No vão da minha sala.


Havia somente um sorriso de canto de boca.
Os olhos vazios, impenetráveis.
Como se soubesse de algo... E eu não.
Um segredo qualquer, uma revelação.

Ele estava sorrindo discretamente.
Diferente da Monalisa.
Gostaria de saber o que ele tinha em mente.

Qual certeza dele me passava tão desapercebida?
E, fundamentalmente...
Por que
Eu
me
sentia
Tão idiota?
Diante daquela figura falsamente estoica e decidida.

Talvez tenha sido algum tipo de memória ancestral.
Da época em que os primeiros e pequeninos mamíferos.
Se deparavam com grandes e pré-históricos predadores.
Escamosos.

Nós, ratos, ali.
Vitimados.
Acuados em tocas.
Indefesos.
Hipnotizados e temerosos.

Inconscientemente cúmplices.

Substancialmente coniventes.

Percebíamos, repentinamente, nosso papel na cadeia alimentar da vida.
Olhávamos fascinados esse mesmo sorriso que vejo agora.
Frio.
Vazio.
Vão.

Inclemente.



...

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