Cabeça de Papel.


art by ~Orestigami




E se eu lhe dissesse que o mundo como você conhece, simplesmente, não existe?
 Sério, olhe para mim, para os traços magros e pálidos do meu rosto.
Eu pareço do tipo que tem senso de humor? Embaixo desse terno surrado e amarrotado e dos meus óculos grossos que, sem dúvida, me fazem parecer um rato de biblioteca... Merda...  A única vantagem de ter vindo para esse lugar foi perceber que eu era um de seus malditos clichês, acho que eles são cicatrizes da união entre as realidades.
Isso explicaria o fascínio de vocês por caras voadores com capas.

 Você acha que estou brincando, não é? Eu pareço alguém que acha algo engraçado?
Seu mundo, esse mundo terrivelmente previsível, é uma ilusão. As coisas importantes para vocês, seus grandes eventos, são segundas-feiras monótonas na minha realidade. Se vocês não fossem tão pré-historicamente atrasados já teriam descoberto que existem universos paralelos, basicamente iguais a esse, porém, muito mais divertidos.
Essa parece ser a diferença fundamental.
Vocês são chatos.

Em outros lugares há notícias de verdade, compreende? Não guerras, terremotos, quebra de bancos, juros. Essas coisas monótonas. Por Deus... Todos os dias havia algo incrível nos jornais. Eu conheci uma garota de vinte anos que sozinha conseguia gerar um tornado F5 estalando os dedos. Tinha um cara negro que cuspia raios... Eu vi o filho da mãe torrar um batalhão inteiro de uma vez... E tinha aquela mulher em chamas...
Aqui o máximo da agitação é o casamento de alguma celebridade.
Intimamente você não sente falta de nada??
Nada mesmo? Como se houvesse material para mais e, no entanto, fosse necessário viver sempre se contendo, com menos, com pouco, com programas ruins na televisão... Tudo segue um script horrível nessa realidade.
Funcional mas horrível.

Claro que as coisas eram meio turbulentas de onde eu vim. Pense na histeria em se descobrir no café da manhã que um asteroide de sete quilômetros ia colidir com o planeta no final do dia. Pense no show de luzes quando um dos muitos heróis resolveu desintegrar aquela imensa rocha com um soco bem calculado. Acho que uns três ou cinco vilões do primeiro escalão, juntos, conseguiriam fazer aquilo, mas ele estava sozinho. O Saturniano estava sozinho no espaço quando salvou o planeta e foi ovacionado por nove bilhões de pessoas. Meu planeta original era um pouco mais populoso. Isso até o índice demográfico dele ser reduzido a zero. Vou lhe fazer um favor e contar o que aconteceu.

Um dos vilões, o mais esperto entre os nossos cientistas loucos, descobriu a existência de realidades paralelas. Ele fez varreduras em cada possível versão do universo até encontrar um lugar sem heróis... Na verdade e nas palavras dele:

“Uma versão do universo onde o mal vencesse no final.”

Claro que não bastava simplesmente ir para esse admirável lugar, o Doutor sabia que isso não ia funcionar. Os heróis viriam e endireitariam as coisas.
Além disso, seria muito fácil apenas trazer toda a escória do meu mundo para o seu.
O que o Doutor tinha em mente tinha que ser brilhante.

Ele bolou um jeito de mesclar as duas Terras misturando ciência e feitiçaria. Foi como ter uma folha de papel em branco gigante nas mãos, ele e alguns outros vilões graúdos reescreveram os dois mundos apagando as partes desnecessárias e formando um lugar único. Eles só não disseram que pretendiam ficar com o bolo e a festa só para eles.
Quase todos os nove bilhões de pessoas que viviam na minha realidade sumiram, ou foram misturadas, eu não sei. Ninguém, fora os membros do clubinho fechado do Doutor, tem lembranças do que aconteceu. Eu mesmo só sei disso porque cinco anos atrás fui atingido por um raio e sobrevivi.

 Deve haver outros como eu por ai, acho que vi o homem-líquido trabalhando como frentista em um posto de gasolina duas semanas atrás...
Bem... Eu estaria pouco me fudendo para tudo isso, para todos os superbabacas e para os três bilhões de Zés-ninguém que sumiram se, ao menos, o Doutor e seus amiguinhos tivessem me ajudado um pouco.
Quero dizer... Olhe para mim. Eu continuo igual e continuo não sendo rico.
Eles poderiam ter pensado nos outros vilões! Poderiam ter me deixado bonito ou ao menos rico.

...O que foi? Não me olhe assim. Eu sou um dos vilões, não está óbvio? Eu era do time B... Talvez C. Basta dizer que eu não era do primeiro escalão. Eu não tinha olhos de raio laser, não derrubava um quarteirão inteiro com um soco nem era capaz de controlar metal com o poder da mente, mas isso não era razão para eles chutarem “O Cabeça de Papel”... Eu sei que é um nome idiota mas os jornais me chamavam assim e o apelido pegou.
Pode me ver mais um copo?

O barman olha para o homem que, até então, lhe contava essa história. Ele seca o balcão e com uma voz bem calma e amigável, de quem já teve que lidar outras vezes com delírios alheios, diz para o estranho cliente:

“Olha amigo, eu acho que você já bebeu demais, já estamos fechando. Por que você não vai para casa descansar um pouco?Acho que você precisa.”
O homem não discute ou se faz de rogado, ele deixa uma nota de cinquenta no balcão do bar, pega alguns guardanapos de papel e os coloca no bolso para, então, levantar e seguir na direção da porta.

“É, eu já bebi muito... Boa noite amigo.” Enquanto caminha, meio cambaleante, ele pega um dos papéis no bolso e começa a dobrá-lo seguidas vezes até formar um origami parecido com um pequeno boneco com mais ou menos um palmo. O homem ajeita os óculos e aproxima a boca do boneco.

“Traga para mim um faixa azul ok?”

O boneco de papel salta sem ser visto da mão dele e começa a correr na direção do bar, o homem passa pela saída. Do lado de fora ele acende um cigarro e espera.
Dois minutos depois o boneco de papel pula para fora do bar através de uma das janelas, carregando, com certa dificuldade, uma garrafa lacrada de whisky. Assim que está próximo aos pés de seu mestre o boneco se desfaz. O homem pega a garrafa e a coloca no bolso.

É uma noite escura. As noites desse lado do universo parecem mais escuras, antes de sumir dentro de outras ruas pequenas aquele homem resmunga alto.
“Eu poderia, pelo menos, ter sido uma celebridade... Isso já estaria bom para o Cabeça de Papel... Mesmo que fosse uma celebridade do tipo B...

Ou C.”


...

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