Paralelo



art by ~gracecarg




Acho importante fornecer algum ponto de referência ao se contar uma história, no final trata-se disso não é? Tudo depende apenas do seu ponto de referência.
Parece pouco, mas, acredito que saber onde você está é fundamental para escolher aonde se quer ir.

Eu? Eu estou em minha casa em São Paulo.
Sentado em um lado da cama, enquanto minha mulher está do lado oposto, bem em frente a um espelho retangular. Ela observa algumas roupas no armário enquanto decide o que usar para sair.
Eu estou aqui e a observo. Percebo como sinto-me bem por estar ali, naquela fração de tempo e espaço exata. Penso sobre o momento, marcando-o. 
Perceber algo, inevitavelmente, muda o que foi visto, atribuindo-lhe significado ou, se preferir, colocando esse algo em perspectiva.

Eu estou aqui, imerso nesse momento, mas a beleza dessa situação é que eu poderia muito bem não estar.
A maior parte das pessoas desiste de considerar outras possibilidades, elas tomam suas visões de mundo como sendo únicas, fixas e derradeiras. Isso não é verdade.
Em um outro universo paralelo uma série de diferentes escolhas foi feita e eu simplesmente não estou aqui.

Estou no mar em um barco, talvez em outro país ou, quem sabe, esteja em um escritório, ou abduzido. Essa é uma boa desculpa para não estar presente em festas e reuniões chatas.

Parece algo muito teórico e abstrato, mas não é, ao menos, não para mim.
Aos quinze anos meus dois pais morreram em um acidente de carro por causa de um motorista bêbado, no final daquele dia, quando não conseguia mais chorar, adormeci com meus tios na sala. Lembro de todas as sensações e, principalmente, lembro que a última coisa que pensei é que daria tudo para estar em outro lugar. Tudo.
Na manhã seguinte, as seis e trinta e sete, eu ouvi a voz da minha mãe na porta do quarto dizendo que eu tinha que acordar ou perderia a hora da escola.
Nem ela, nem meu pai compreenderam por qual razão o filho deles saiu correndo do quarto chorando e ficou abraçado com eles por quase 10 minutos... Eu mesmo não entendi.

As coisas ficaram um pouco mais claras nos dias seguintes quando voltei para a escola e comecei a notar mudanças em tudo o que via. Você pode chamar isso de desvios se quiser.
Essa palavra é importante para entender o processo. Em tudo que estava ao meu redor parecia existir alguma falha, alguma pequena coisa errada, as vezes eram as cores das minhas roupas, os programas na televisão, nomes de lugares ... Coisas pequenas.
Nada muito significativo, até uma terça-feira, na aula de história. Meu professor insistiu em chamar o que eu conhecia como França de “Império Franco”.
Por alguma razão eu estava vivendo um mundo onde Napoleão nunca foi derrotado e por isso quase toda Europa falava francês.

Não foi uma coisa muito fácil de aceitar no começo, mas quando voltei para casa naquele dia e vi meus pais rindo na sala por causa de um seriado na tv, confesso que pensei:
“Foda-se a França”.

Passei um bom tempo lendo sobre universos paralelos e todas aquelas estranhezas quânticas, não é tão complicado quando você consegue fazer, na prática, os devaneios teóricos deles.
Basta ter em mente que ao estar em uma bifurcação na estrada e, escolher ir para a esquerda, você não vai estar, com isso, apagando o caminho da direita. Ele vai continuar ali e acredite-me, uma versão sua foi para o lado oposto.

A diferença básica entre eu e as outras pessoas que conheci, é que elas deixam para trás as diferentes possíveis escolhas, e eu, trago todas simultaneamente comigo. Eu sou todos aqueles caminhos.
Uma versão minha foi para a direita e, graças a isso, teve uma série de experiências diferentes.
Outra versão parou o carro e voltou para pegar a carteira.
Outro eu não saiu de carro aquele dia. Outro percorreu o caminho a pé.
Outro não tinha pernas e outro já estava morto há 3 anos.

Ao compreender esse conceito descobri que conseguia ir para esses lugares diferentes, com a mesma facilidade que alguém folheia um livro e decide qual página vai ler.
Cada página, cada uma, está contanto a história de modos que podem ser próximos ou abissalmente diferentes. Se estou na página 12, não consigo pular para a 33 ou voltar para a 5, mas consigo ver cada possível página 12 já escrita e escolher qual delas me agrada mais para ficar.

Eu era jovem quando comecei a fazer isso. Esse poder ainda era algo novo e empolgante para mim, entende?  E claro, fiz o que qualquer adolescente normal faria, usei essa habilidade das formas mais estúpidas e divertidas possíveis.

Ainda não sei qual erro no sistema existe e me permite transitar entre os diferentes “eus” sem me desfazer de minhas lembranças, mas eu vivi várias vidas. Na segunda eu poderia ser um morador de rua, na terça estudante graduado, na quarta um astro do futebol, quinta astronauta, sexta bêbado e no sábado um monge sem qualquer sinal de ressaca.

Confesso que detestei meus trinta minutos na versão zumbi do mundo, principalmente porque achava que seria o herói com a moto-serra e acabei percebendo que era só mais um dos infectados, vagando lentamente e com um terrível apetite por carne fresca... Mais estranho foi ter escamas. Oh sim, existe um mundo onde o asteroide que matou os dinossauros errou a Terra e meus ancestrais diretos eram repteis e não mamíferos. E sim... Há um mundo onde eu fazia fotossíntese.

Vivi outras durante vinte e sete anos assim, até que, um dia, algo aconteceu.
Deveria dizer ela aconteceu. Eu a achei linda e cinco minutos depois de conhecê-la em uma festa, revirei dezenas de realidades até encontrar uma onde aquela garota tivesse me beijado no final da noite.

Por isso, para alguém que pode estar em qualquer lugar, me sinto bem aqui.

“O que acha dessa calça?” Ela olha para mim esperando uma resposta. É uma calça jeans com uma estampa horrível de listras.
Fecho meus olhos por um momento.

Quando abro, vejo minha esposa no mesmo lugar, com uma calça preta lisa.

“Você está linda como sempre. Vamos indo?”
Eu poderia usar meu poder para tecer um longo tratado filosófico sobre a natureza humana e sobre como ela parece sempre pequena e cruel em quase todos os lugares que visitei. Poderia falar que as coisas não precisam sempre ser como são, que é possível mudar...Mas, no momento, uso isso para economizar tempo na troca de roupa.

Desculpe.
Estou realmente com fome e quero logo chegar no restaurante.



Moacir Novaes
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