Da boca para fora.



“Você perdeu o paladar.”

“Por quantos dias?”

“Não.”

“Semanas??”

“Não. Perder nesse caso tem o sentido de “foi embora e nunca mais voltou”. Você perdeu o paladar e aparentemente é uma condição irreversível. Essa é uma síndrome bem rara chamada de Petra Ore ou Boca de Pedra, eu cheguei a desconfiar de Lupus mas parece que você conseguiu queimar suas papilas gustativas, todas ao mesmo tempo, graças, eu apostaria, a combinação exótica de drinks coloridos, malva e gengibre que você fez no final de semana enquanto estava bêbado... Pela sua cara eu acho que você não está interessado nesses fatos históricos, não é?”

“...Mas eu uso a boca para trabalhar!”

“Bem, pode ser uma oportunidade para você repensar sua vida como michê.”

“Não! Eu quis dizer que sou um degustador de café.”

“Eles pagam você para tomar café?”

“Sim.”

“Tipo como em um emprego de verdade?”

“É um emprego de verdade.”

“Claro... Eu nem imaginava que poderia ser pago por algo que faço de graça todos os dias de manhã.”

“Olha eu preciso do meu paladar. Se eu não conseguir sentir o gosto como vou poder classificar o café ou saber se ele está bom.”

“Você ainda vai conseguir perceber quente e frio, não é o bastante pro seu serviço?”

“É mais complicado do que isso... Eu estou fodido. Fodido!”

“Olha, eu odeio ver um cara crescido chorando. Calma ok? Apesar de sua condição ser permanente eu posso ao menos lhe dar um conselho sobre isso.
Vá para casa, descanse, beba bastante água e durma um pouco. Quando acordar vá para o seu trabalho como se nada tivesse acontecido.
Você ainda tem outros...1..2.. 4 sentidos, isso, 4 sentidos e não é como se você tivesse perdido uma perna, braço ou cabeça. Além disso ninguém vai notar, confie em mim, você acha que os médicos sempre sabem exatamente o que estão fazendo? Na maior parte dos casos o diagnóstico é só uma soma de palpites, chutes e experiências anteriores, imagino que no seu ramo não deve ser muito diferente.
Quando alguém entra no meu consultório com o nariz escorrendo e espirrando eu digo que é gripe e não uma infecção alienígena do espaço, é simples, as pessoas preferem escutar e acreditar no que elas desejam escutar e acreditar.”

“Humm... Ok... Obrigado doutor.”

“Disponha. São R$475,00 você pode pagar para o moço na recepção. Viu? E você nem vai ter como achar esse preço salgado... Entendeu? Salgado, paladar...”

Nosso caro herói deixou o consultório, deixou também R$475,00 na recepção, assim como, suas esperanças e planos para o futuro. Ele voltou para casa e lembrou apenas de seguir um dos conselhos do médico que era dormir com o peso do mundo nas costas.

De manhã ele não foi trabalhar como havia sido recomendado, inventou uma desculpa qualquer sobre uma tia genérica de Manaus falecida repentinamente. Isso lhe daria tempo para pensar.
Passou as horas seguintes etiquetando coisas como “açúcar”, “sal”, “soda cáustica”, sorte dele não ter heroína ou cocaína jogados pela casa ou, sem dúvida, cedo ou tarde ele teria o chá das cinco mais animado de todos os tempos.

Enquanto etiquetava sua nova vida ele pensou no que o médico havia dito. Resumidamente “...as pessoas preferem escutar e acreditar no que elas desejam escutar e acreditar”. Havia toda uma questão de ética e princípios, mas isso se diluiu e desapareceu por completo quando ele olhou para as contas do mês em cima da mesa e para a prestação do carro, uma, das vinte e três que ainda deveriam ser pagas. O incontestável peso da realidade e dos boletos nos leva até a semana seguinte.
“E sua mãe como está? Superando?”

“Superando o que?”

‘A sua tia de Manaus...”

“Ah...  Sim, está sendo uma barra para ela, mas ela vai ficar bem, pode me passar a prancheta?”

“Tem certeza que você está bem para julgar? Se precisar podemos substituir você na final”
“Não. Estou bem, sem problema. Temos que ser profissionais algumas vezes.”

Ele subiu até o palco, sentou-se lado a lado com os outros peritos, na plateia você poderia contar umas trezentas ou quatrocentas pessoas. Metade delas trabalhando para sites, restaurantes e revistas especializadas.
A xícara foi colocada na frente dele.
Tudo ficou bem silencioso. Naquele preciso instante a diminuta xícara de porcelana parecia um insondável e mortífero buraco negro.

A mão dele tremeu antes de pegar o recipiente... Um segundo depois de segurá-lo com a ponta dos dedos outra constatação, a temperatura estava correta.
A cor parecia certa, o vapor se movendo nas bordas e a densidade batiam com o que ele se lembrava. Vinte e três prestações, e todos aqueles códigos de barras dos boletos.
Como objeto de densidade absoluta a xícara pesava o equivalente a massa total de uma estrela no breve caminho da mesa até a boca dele.
Era como beber o vácuo.
Um último pensamento passou por sua cabeça: “Eles poderiam ter colocado tinta nanquim aqui que eu não notaria.”

A xícara é colocada de volta na mesa. Todos esperam o veredito em silêncio cúmplice.
“Isso não é um café...”

E diante da dura afirmação um claro burburinho espalha-se no auditório.

“Isso é uma experiência completa... Há a densidade líquida do sabor inicial. Ele atinge cada parte da boca com a voracidade que você só encontraria em amantes afastados por longos anos e faz isso na temperatura exata. Sem excessos, mas, ao mesmo tempo, sem se conter.
Logo depois desse impacto encontramos uma gama de intenções filtradas, mas não enfraquecidas, da torra até as frutas secas, em uma sensação longa, harmônica e constante.
Algo confiável e reconfortante.
É quase possível sentir as mãos ásperas colhendo e separando os grãos durante uma tarde quente e seca de outono, o trabalho para ensacar e mover o produto até a cidade mais próxima e as divagações sobre a próxima colheita.
Está tudo aqui, somado e concentrado, no pequeno espaço branco imaculado dessa xícara.”

É verdade, sim, que dois estagiários, de diferentes páginas na internet, em pé e escondidos lá no fundo da plateia imediatamente pensaram: “Mas que porra é essa??” quando ele terminou de descrever o café, mas, rapidamente o pensamento deles foi interrompido pela efusiva e maciça salva de palmas. As pessoas levantavam-se para aplaudir fascinadas, os produtores daquele café abraçavam-se e desfaziam-se em lágrimas e sorrisos, fotos eram feitas e vídeos gravados.
Era um momento de consagração onde todos pareciam ter reconhecido a genialidade daquela opinião tão próxima e afinada com aquilo que esperavam.

Nosso incauto herói foi ovacionado, aplaudido, aclamado como sumidade e cabeça criativa. Afinal ele ia além do provar. Ele criava e conduzia nossos sedentos espectadores por um mundo de histórias e sinestesia.

Entrevistas tornaram-se constantes, aparições em capas de revistas, fotos com a legenda “o homem do ano” e logo os convites para entrar na política e comandar seu próprio talk show surgiram e as vinte e três parcelas foram pagas todas de uma vez. Adiantadas.

No fundo, bem lá no fundo da xícara, misturada com a borra havia a tranquilizadora certeza que as pessoas adoram escutar e acreditar naquilo que elas desejam escutar e acreditar.


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