A fábula da cidade seca.




*. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas ou com fatos reais terá sido mera coincidência.
Uma fábula é, normalmente, uma história que tem como protagonistas animais, objetos ou forças da natureza, em qualquer um dos casos, esses personagens apresentam muitas vezes características humanas.
Por isso e por sua simplicidade e clareza fábulas são, frequentemente, utilizadas para transmitir algum ensinamento moral, instrutivo ou ético.
Via de regra elas iniciam-se com as palavras: “Era uma vez...”

Era uma vez uma cidade chamada São Paulo, ela auto-proclamava-se, em um delírio de grandeza injustificado, a locomotiva do país, por vezes do continente e, em alguns momentos, do Sistema Solar.
Sua população, de muitos milhões, vivia rigorosamente dividida em castas.
Havia uma minoria de ricos e brancos, casando-se e reproduzindo-se com outros ricos e brancos em complexos rituais que envolviam contratos, heranças, partilhas e comunhão/separação de bens. Hábitos estes que, ao longo do tempo, deixaram as futuras gerações, de ricos e brancos, com uma fisionomia muito parecida.
Peculiar e própria.
Você poderia olhar e ver o mesmo rosto e expressão vaga.
O mesmo aspecto macio e corado entre eles.
Suculento e inofensivo, como um salgado exposto em uma vitrine.

Esse grupo de privilegiados via, ao olhar para baixo, a casta da classe média.

Ali, acumulados no meio da pirâmide, estavam todos aqueles estagnados no caminho entre a pobreza e a riqueza. Casavam-se e reproduziam-se entre si, preferencialmente com outras pessoas brancas ou, ao menos, que fossem menos médias e mais ricas do que eles.
Aqui você encontraria os funcionários públicos, estudantes, membros das forças armadas, artistas, comerciantes, mas em suma, todos que, de uma forma ou de outra, ainda precisavam trabalhar para os ricos para sobreviver.

A classe média, por sua vez, ao olhar para baixo deparava-se com a base dessa intricada pirâmide social, formada pela casta dos mais pobres e trabalhadores braçais que representavam a ampla maioria dos habitantes locais.
Quando estes olhavam para baixo, quase sempre não viam ninguém, situação bastante incômoda porque, para o sistema de castas funcionar, era necessário ao menos um dentre dois fatores básicos:

-Ter a esperança de um dia ascender para uma casta superior.
ou
-Ter o prazer de ver alguém permanentemente preso em uma casta inferior.

Ah claro, também existiam os políticos, mas eles, como criadores e mantenedores do sistema de castas, não estavam sujeitos a mesma classificação dos demais.
Formavam em si um grupo fechado de bem nascidos que normalmente herdavam sobrenomes importantes e todos os votos que os acompanhavam, de ricos entediados com as tardes livres e, esporadicamente, membros das castas inferiores que por exotismo ou sorte entraram para esse seleto clube.
A política era em si uma forma de ganhar prestígio e poder para quem tinha dinheiro ou de tirar o pé da lama para quem não tinha nada.
Como subir socialmente, ao longo do tempo, tornou-se uma tarefa praticamente impossível e temendo o colapso do sistema de castas, foi necessário criar um ponto de referência em comum para todos os envolvidos nessa organização social.
Algo que todos os paulistas pudessem olhar com total e absoluto desprezo.
Decidiu-se, após longos debates, que esse denominador do ódio comum seriam os migrantes.

Nada mais perfeito do que um grupo sem posses, nem mesmo terra natal.
Mestiço, se possível negro e ainda mais pobre do que os pobres nativos, desse modo a casta mais baixa teria a preciosa sensação de poder julgar e condenar alguém.
Eles olhariam para essas pessoas que abandonaram suas casas, fugindo da fome e da seca, olhariam suas esperanças e credulidade em dias melhores e pensariam que os paulistas e São Paulo faziam-lhes um favor por recebê-los e, mais do que isso, um favor por tolerá-los.

Assim foi feito.
Durante um algum tempo tudo funcionou bem.

São Paulo recebia os migrantes, criava nomes e apelidos para eles, reduzia e restringia quase todos a trabalhadores que habitavam o imaginário coletivo do subemprego e das periferias. Por vezes eles vinham de outros estados, cidades... Algumas vezes de países vizinhos. Não fazia muita diferença.
Havia algo profundamente democrático em todo esse rancor e repulsa.
Todos que podiam pisar no que era considerado diferente e sentiam-se bem.

Porém, essa história trata-se de uma fábula e em fábulas as coisas sempre mudam.

Um dia uma grande seca atingiu São Paulo.
Para os nativos tratava-se de um castigo da natureza, um evento bíblico... Obviamente não havia qualquer ligação com o fato das indústrias, condomínios e empresas locais usarem ilegalmente poços artesianos e fontes de água. Também não tinha relação com a obsessão compulsiva dos nativos em lavar seus carros e calçadas. Tão pouco a causa da seca era a incompetência dos políticos em gerir e planejar o uso dos recursos hídricos... Imagine, isso seria um absurdo.
A culpa era da natureza, talvez, invejosa diante do poder absolutista de São Paulo.

A água gradualmente e em poucos meses acabou.
Houve tempo para que o governo fingisse que nada estava acontecendo, houve tempo para que o governo incentivassem os cidadãos de bem a vigiar uns aos outros na quantidade de copos dágua que eles consumiam ou nas plantas que regavam.
Os paulistas abraçaram prontamente essa ideia e o pequeno poder que a acompanhava de denunciar o próximo, mesmo que esse  próximo fosse um membro da família.
Prisões foram feitas, multas aplicadas... Obviamente somente para e entre os membros das castas inferiores.
Saques ocorreram.

Era comum encontrar paulistas parados sob o Sol ao lado de seus carros, segurando garrafas plásticas e pequenas flanelas úmidas. Muitos perderam a vida desidratados tentando, em vão, lutar contra o pó e a poluição sobre a lataria de seus veículos.

Quando finalmente a água acabou não restou outra alternativa, para o orgulhoso povo paulista, além de migrar e buscar refúgio em outras cidades.

Inicialmente os paulistas procuraram abrigo no Sul, dadas as similaridades conservadoras e as afinidades entre os dois estados, mas os sulistas já havia apressado-se em construir um longo muro e isolar-se dos problemas externos.
Contavam inclusive com hino e bandeiras próprios.

Restou aos paulistas tentar a sorte nos estados vizinhos e, novamente, eles foram com maior ou menor sutileza barrados.
Sobrava o nordeste.
Creio que teriam sido bem recebidos, mas sabe como é um paulista... Um legítimo membro da locomotiva nacional não dá o braço a torcer.

Famílias inteiras preferiram atirarem-se no mar a depender daqueles que, para os paulistas, poderiam apenas ser empregados ou mão de obra barata.
Alguns escolheram se trancar em seus automóveis, imaginando que estariam protegidos em suas bolhas, pensando que bastaria apenas fazer o que sempre fizeram "ignorar e fingir que nada estava acontecendo"... Ainda hoje é possível encontrar esqueletos impassíveis, com os dedos ossudos grudados firmemente nos volantes de carros abandonados em largas avenidas e viadutos.

Não preciso dizer que a população da cidade decaiu drasticamente.
Nas ruas vazias, nas praças terrivelmente secas, entre os imensos prédios, não se via alma viva.

Após alguns anos São Paulo tornou-se um imenso fantasma.
Vazio e silencioso.
Muito agradável na verdade.

Surpreendentemente, contrariando todas as expectativas, quando a cidade morreu.
Quando a locomotiva parou.

O país continuou a funcionar.
O continente permaneceu se movendo.
E o Sistema Solar manteve-se girando.

E se você se perguntar "E os animais da fábula? Onde estão?"
A resposta é: "Dirigindo os carros... Parados no trânsito."


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