A fumaça enfeitava a noite já cansada de
existir.
O ambiente fechado enchia os poros de suor,
que se misturava nas peles também já cansadas.
Odair entrou com sua costumeira lentidão e
quem o visse pensaria que certamente ele estava chapado. Mas não, Odair era
assim mesmo. E todos na casa o conheciam. Chegava sempre cedo, arrastando seus
pés cansados sobre o chão grudento. Sentava no canto mais escondido e escuro,
onde ele pudesse ver sem ser visto. Tomava uma dose de pinga pura e esperava o
espetáculo começar. O espetáculo das pessoas tingidas de cores.
Pessoas que para ele eram sobrenaturais.
Seus
vestidos, seus olhos pintados e seus olhares tinham tons nunca antes vistos na
luz do dia.
Tudo aquilo tinha cor, tinha volume, tinha
peso, tinha luz, tinha sombra.
Odair sempre
pensava como se sentia mais perto de Deus naquele lugar.
Como se
sentia vivo. Tão vivo.
Era por isso que gastava quase toda
aposentadoria com muito orgulho tomando sua pinga e fazendo um agrado às suas
mulheres. Sim, todas eram suas mulheres. Porque ele via cada uma delas, como
elas eram, e só elas sabiam disso, e só Odair sabia como elas eram.
Não gostava
de tocar, não ousava tocá-las tamanho respeito que possuía por aquelas figuras.
Por aquelas mulheres.
Mulheres
tingidas de cores que o tratavam com carinho e respeito.
Todas adoravam Odair, desabafavam com Odair,
reclamavam com Odair.
E ele ouvia paciente, e achava fascinante
conhecer todas aquelas mulheres com tanta intimidade.
Odair sentia que assim, conhecia o mundo.
Para Odair
aquilo era o paraíso: Abafado, fechado, a vida condensada e espremida num só
lugar. Tão espremida lá dentro que às vezes chegava a explodir, e vazava alguém
porta afora, ou mesmo rolando entre os cacos da janela quebrada embebidos em
sangue e suor.
Aquilo para
Odair era a vida pulsando.
Odair morria
de rir desses incidentes tão típicos do local. Mas ria baixinho, com a mão
sobre a boca como aprendera desde que perdera alguns dentes e teve que usar
ponte.
Mas tudo
encantava Odair. Até o som do vidro se quebrando fosse em garrafas ou
janelas...Aquilo era música.
Kátia, Greice, Vivian... Essa noite teria o
show da Jéssica. Que era a sua preferida.
Não sabia bem
porque, mas imaginava que Jéssica tivesse um gosto diferente das demais, embora
nunca tivesse experimentado.
Ela olhava diferente.
Não para os
outros, talvez para ele.
Ou talvez para os outros sim, mas não só para
os outros. Para o mundo.
Jéssica tinha
mais sombra no olhar embora usasse pouca maquiagem. Jéssica não tinha formas
tão avantajadas quanto às outras, e nem todos preferiam Jéssica.
Mas... Jéssica tinha aqueles pés. Aqueles pés
que Odair jamais ousara tocar, mesmo que Jéssica tivesse permitido e insistido
tantas vezes notando a adoração que Odair tinha por eles.
Apenas uma
vez, enquanto Jéssica dormia, Odair percorreu sutilmente o indicador por toda
parte superior do pé esquerdo de Jéssica.
Porque se ela estivesse acordada Odair não
teria coragem. Tinha certeza de que ela sentiria através do seu toque tudo
aquilo que ele nunca teria coragem de dizer.
Sentiria o
seu desespero, a sua solidão, e ficaria assustada com certeza. Então, somente
naquele dia, Odair passou o indicador sobre o pé esquerdo de Jéssica e ficou
olhando para o próprio dedo por muito tempo, com a boca aberta num sorriso bobo.
Odair nem se
atentava às formas de Jéssica, que para ele já eram tão conhecidas. Olhava para
os pés dela. E dava um sorriso de satisfação.
Quando
Jéssica estava no palco Odair se sentia orgulhoso de ver como as pessoas
olhavam para ela. Aquelas pessoas estavam em paz, ele não via isso lá fora.
Naquele momento Jéssica era Deus, pois só Jéssica importava para todos, e até
as outras meninas que dançavam em outros colos só o faziam, graças ao ritmo
instaurado por Jéssica.
Aquele palco
trazia um poder a quem lá entrasse.
E nesse
momento era Jéssica o centro das atenções.
Embora fosse
sempre o centro das atenções para Odair.
Desde a
primeira vez em que ele entrou naquele lugar, sequer se lembrava de quando, não
era bom com datas. Mas devia fazer muito tempo porque Jéssica era muito novinha
e seu olhar de sombra, agora, antes era só medo.
Hoje ela não
tinha mais medo.
Ela tinha cansaço de saber que a vida era só
aquilo e pronto e no fundo tinha até saudades de seu medo. Odair sabia disso,
ela havia lhe revelado certa vez:
“Saudades de ter medo. Saudades de me sentir
vulnerável na vida”.
Repetia ela,
bêbada.
Hoje ela
tinha certezas que não a assustavam. E ele entendia. Respondia com seu
costumeiro silêncio e seu olhar lento, mais lento que o coração de Jéssica. E
por um momento eles se entendiam.
Certa vez, e
Odair sempre corava ao lembrar-se disso, sonhou que pedia Jéssica em casamento,
que compravam um terreno com quintal grande e que todas as noites ele
massageava seus pés.
Aqueles pés
tão cansados de saltos.
Na verdade,
Odair não sabia se tinha sonhado ou imaginado.
Imaginado ou
vivido tudo isso em alguma realidade paralela.
Mas, se dissesse isso em voz alta diriam que ele
era só um velho doido. Então ele preferia pensar que sonhou com aquilo.
Olhou-se num
daqueles cacos de espelho colados à parede.
Não era tão
velho, talvez um pouco maltratado pela vida. Ajeitou o que restava do cabelo e
coçou a barba. Olhou para Jéssica. E achou que ela tinha lido seus pensamentos.
Mas já era
tarde para esses pensamentos. E Jéssica ainda tinha muita coisa para viver
naquela noite colorida, naquele espetáculo que era sua vida.
_Jéssica está cansada - notou. E pela
primeira vez sentiu que não tinha motivos para sorrir ali dentro. Pois Jéssica
estava cansada.
Aquilo o
perturbou profundamente.
Ajeitou a
camisa tentando resgatar o resto de vaidade que talvez tivesse existido um dia
nele, olhou ao redor e aquelas cores começaram a lhe arder os olhos. O cheiro
lhe causava náusea, e Jéssica estava cansada! Será que ninguém percebia que
Jéssica estava cansada?
Todos dançavam, se beijavam e riam despreocupados
com os pés de Jéssica.
Como ele podia ter gostado desse lugar, dessas
pessoas?
Fechou a
cara.
Tomou mais
uma dose de pinga e mais outra por Jéssica que estava trabalhando e não poderia
acompanhá-lo naquela hora.
Jéssicaestácansadajéssicaestácansadajéssicaestácansada
– repetia ele
mentalmente, embriagado. Suado. Cansado.
Olhava ao
redor e todas as cores se confundiam na sua cabeça, criando outras novas que o
perturbavam mais ainda. As expressões pareciam caretas e o som dos risos
alheios não passava de um lamento ou grunhidos desesperados.
Precisava
tirar Jéssica dali.
Não conseguia
mais respirar naquele lugar abafado, sabia que se chegasse perto de Jéssica, só
um pouco mais perto, se sentiria melhor, e ela, ela também saberia que era hora
de ir embora, de deixar aquele lugar, para sempre.
Passou por
alguns casais, fumaças e odores para chegar até ela. Mas não chegava nunca.
Alguém sempre o empurrava para trás, quase com
violência. Mesmo que pedisse licença daquele jeito tímido e educado.
Odair foi
reunindo forças, que vinham diante da indignação do cansaço de Jéssica e da
indiferença dos demais. Não se culpou por não ser educado, e bruscamente foi
abrindo caminhos, imaginando que este era o trajeto até a sua felicidade, até
uma nova vida com Jéssica, longe daquele lugar, longe daquelas pessoas.
Pediria Jéssica em casamento pediria Jéssica e
agora nada mais importava nada mais importava porque agora Odair não tinha mais
medo ele falaria com Jéssica falaria com Jéssica tudo o que nunca teve coragem
de falar Odair estendeu os braços para Jéssica estendeu os braços para Jéssica
pedindo doando recebendo suplicando por ela por tocá-la por seus pés mas
Jéssica estava cansada Jéssica estava cansada e provavelmente seus pés doíam os
pés de Jéssica pobre Jéssica doía tanto doía tanto que Odair sentiu um estalo
na própria cabeça tão grande imaginava ser a dor dos pés de Jéssica.
E por um
momento Jéssica encarou Odair, com aqueles grandes olhos que dessa vez,
pareceram sentir o que era medo novamente.
Odair sentiu
seu corpo cair em meio a uma gritaria e pensou sorrindo: “Não se preocupe Jéssica vou massagear seus pés” Quando sentiu seu
perfume, inconfundível, e pensou estar sonhando ao ver que Jéssica o segurava
em seus braços.
_O velho ia te atacar! –gritou alguém que
parecia estar com uma garrafa quebrada na mão enquanto era segurado pelos dois
seguranças da casa, Odair não tinha muita certeza, sua vista começava a
embaçar.
Teve
impressão de ouvir a doce voz de Jéssica falar algum nome feio.
“Os pés de Jéssica devem estar muito cansados
mesmo, ela não costuma falar palavrões”.
Odair notou
que Jéssica devia estar muito triste naquele dia ao conseguir focar seus olhos.
E ficou mais preocupado ainda com o cansaço de seus pés.
Jéssica
estava transtornada ao ver a respiração ofegante de Odair, notando seu
desespero para balbuciar palavras que não saíam. Odair gesticulava com esforço
e apontava para seus pés.
Jéssica
entendeu. Tirou os sapatos para alívio de Odair e os entregou em suas mãos.
Finalmente Odair respirou mais calmo e aliviado. Sorriu para Jéssica, dessa vez
sem esconder o sorriso com a mão.
Abraçou os sapatos, e morreu em paz.
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