111 razões para aprender Português.





Adquiri um hábito nesses últimos anos.
No primeiro dia de aula, pouco depois de entrar na sala e apagar o quadro negro.
Quando ainda estou estabelecendo o contato inicial com os estudantes do ensino médio.
Após falar sobre as regras básicas de convívio e respeito mútuo, eu pergunto para eles:  Por que estão aprendendo português?

Normalmente há o silêncio, com sorte alguém faz uma brincadeira.
Depois lembram do trabalho e de algumas outras frases como “para ser alguém na vida” ou “para ter um bom emprego”.

Eu escuto as respostas.
Digo que elas e os motivos mudam de pessoa para pessoa e então falo que também penso e me questiono sobre isso. Digo que tenho uma definição possível e que gostaria de dividi-la com a sala.
Falo que tenho uma ideia de por qual motivo aprende-se português na escola.

“São 111 motivos.”
111 é um número abstrato e eu desejo que eles tenham noção da quantidade, preciso que saibam o que isso representa.
Vou até a lousa e conto, em voz alta, marcando o quadro 111 vezes.
Depois de escrever, viro para a sala. Peço que observem a quantidade.
Eles olham.
Acho que se estivesse no lugar deles também não entenderia de imediato e pensaria comigo “Acho que esse professor é louco.”

Espero esse tempo, preciso que compreendam e tornem essa quantidade abstrata algo real.
Explico para os estudantes na sala que, em dezembro de 2015, um carro com 5 adolescentes, iguais a eles, foi atingido por 111 tiros. O motorista, segundo o depoimento dos policiais envolvidos no caso, tinha uma pistola. A arma estava, gentilmente, pousada no chão ao lado da porta do carro.
O veículo foi atingido por 111 disparos. Mais de 80 deles de fuzil, o restante com pistola.
Explico como uma bala de fuzil atravessa metal. Descrevo o que uma bala de pistola faz depois de entrar no corpo humano. Digo que a versão apresentada inicialmente é que o motorista teria resistido ao comando para parar o carro e que a versão de um motociclista que seguia o carro é que eles foram executados, sumariamente. 111 disparos, uma quantidade que impressiona.
Um dos jovens no carro estaria comemorando com seus amigos o emprego que havia conseguido alguns dias antes.
Repito que foram 111 disparos.

Lembro que em outubro de 1992, durante uma rebelião na casa de detenção do Carandiru, 111 presidiários foram mortos. Digo que na época os peritos identificaram que 90% dos tiros tinham sido efetuados na região da cabeça.
Aproximo a porcentagem de algo mais tangível... 9 de cada 10 presos tinham sido mortos com tiros na cabeça.

Falo sobre 111 operários, em 2013, descobertos vivendo em condições análogas às de escravos na ampliação do aeroporto de Cumbica em São Paulo. São Paulo, a maior cidade de uma país chamado Brasil.

Por fim, digo que compreender cada um desses casos, entender quem se beneficia com essas situações e por qual razão esses relatos se repetem, ano após ano, é, essencialmente, a razão para se aprender português.

111 razões.

Não se trata apenas de ter ou não um bom emprego, ler clássicos escritos por um monte de mortos, de localizar termos em uma oração, ter um vocabulário rebuscado e vasto.

É sobre compreender onde você está.
Como chegou aqui e para onde se vai.
Trata-se de descobrir o motivo das coisas e entender por qual razão elas acontecem e por qual motivo são toleradas e aceitas como fatos do cotidiano.

É sobre perceber quando algo não está certo e tentar descobrir como esse algo pode ser alterado.

111 escravos.
111 mortos.
111 tiros.

Meus cinquenta minutos terminam.
A aula acaba.


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