Singularidade


art by ~sundragon83


“Já notou como agora a ânfora com as sementes más sempre está cheia até a boca e a outra, com as boas, vive vazia até o fundo? São vasos bonitos demais para deixá-los assim sem uso. Poderíamos lançar todas as sementes que sobraram de uma vez, seria divertido.” Pan deslizava uma das mãos sobre a superfície porosa, a pele fina da palma e dedos demonstrava como ele era contrário a idéia de esforço físico e permitia ao sátiro sentir os desenhos intrincados e o relevo dos vasos. Houve época em que Zeus e alguns outros deuses do Olimpo semeavam o mundo usando aqueles mesmos recipientes, dividindo as pessoas em boas e más, heróis e vilões, mortais e imortais.

“Gosto da textura áspera e de pensar nas poderosas mãos que tocaram essas velharias antes de mim, imagino o que pensavam quando lançavam as sementes no mundo. Deviam se achar importantes, fundamentais e tão insubstituíveis.
Não sei como, em sua infinita sabedoria, nenhum deles previu o desequilíbrio entre o que era plantado e o que colhiam. Nós tínhamos algumas boas sementes não é Ares? Algumas realmente boas, mas, nunca vi alguém cuidando delas adequadamente.
Hoje, cada um que vejo, beijo ou faço sexo parece-me pequeno e mau, raivoso ou assustado. Todas as pessoas parecem sentir um medo terrível de ser maiores ou melhores, eles sempre odiaram conviver com gigantes, isso é um fato, desconfio que eles nos odiavam também, não nos viam como uma inspiração, éramos só um lembrete de quão pequenos eles tinham escolhido ser.”

“Você está bêbado Pan?”

“Eu sempre estou, é a única forma de tornar a convivência com essa realidade suportável. Se estivesse sóbrio não estaria aqui em nossas tediosas reuniões.
Nem estaria filosofando sobre vasos.”

“Ervas daninhas plantadas em boa terra ainda serão ervas daninhas. É simples, não há necessidade de filosofia. O que foi... Por que está me olhando assim Pan?
Se tivesse altas expectativas diante do comportamento dos humanos eu teria escolhido ser o deus da medicina ou da ciência e não o deus da guerra.”

“Ela ainda vai demorar muito?”

“Não sei. Ela é uma mulher e você sabe como elas são.”

“Sim... Sei, mas ela também é uma deusa, isso a torna duplamente imprevisível.” Era possível escutar o som impaciente dos cascos de Pan enquanto caminhava cambaleante diante das grandes janelas, o salão todo era um belo e amplo lugar com piso, colunas e paredes de granito negro absolutamente esterilizado e polido. O prédio onde o salão estava erguia-se a meio quilometro do solo.
Através do reflexo das janelas estendia-se uma imensa cidade e uma miríade de luzes, aquele era o lar de Pandora, cada um dos três deuses tinha uma cidade que lhe pertencia.
Eles poderiam transitar e agir livremente em todas as outras, mas cada um tinha direito de reivindicar um local não ocupado para si pelo tempo que desejasse.

“A vista é fantástica, não é? Ao mesmo tempo em que me dá vertigens me dá também um pouco de vontade de vomitar. Dubai é linda nessa época do ano... Quase igual às outras cidades, só que mais forte, maior e completamente inumana.
Não é fantástico imaginar um lugar como esse totalmente vazio? Sem pessoas, sem sons... Só essa beleza de máquinas, cristal e aço. Não faz você pensar em como seria o mundo sem as pessoas?”

“Achava que o papel de algoz do homem fosse meu Pan. Você está sendo duro em seu julgamento porque espera algo da humanidade. Além disso precisamos deles.”
Havia um peso na voz de Ares e seu olhar sempre tinha tanto ódio, mesmo calado observando Pan havia esse ódio em torno de sua imagem, não importa qual fosse seu arquétipo temporário.
No último século ele apresentava-se como um homem em um terno azul cobalto ou preto marfim, cortado e medido até a perfeição. Caucasiano, algo em torno de trinta e cinco anos, o tipo bem comum que desaparece na multidão.
Um soldado desconhecido com uma voz grave e um rosnado baixo entre as palavras.
Ares odiava a humanidade e principalmente odiava depender dela. Ele sempre se sentia incompleto, com fome esperando a próxima guerra lhe dar sentido.

“Sei o quanto as pessoas comuns são parecidas com os próprios deuses.”

“E vice versa...”

“É. E vice versa Pan... A diferença é que sabemos sermos monstros. Isso torna os diálogos entre nossa classe e os humanos um exercício com pouco propósito. Sabe o que eu odeio sobre a humanidade?”

“Tudo... No que me diz respeito isso pode continuar assim, as coisas estão muito bem. Acho que nunca tive tantas pessoas desesperadas em busca da felicidade e você também nunca esteve tão ocupado. As coisas estão bem. ”

“Elas não estão e nós três sabemos disso.” A voz metálica guardava certa similaridade com o som de uma harpa. Ela emanava de todo o ambiente, rodeando Ares e Pan como algo infiltrado nas paredes do salão. Imediatamente depois dessas palavras um grupo de três grandes monitores lentamente foi aberto nas paredes, todos eles exibiam a imagem de Pandora, ela estava linda como se este fosse seu estado natural.
Uma beleza fria e simétrica que parecia evoluir com o decorrer do tempo.

“Boa noite Pandora... Você está um pouco bidimensional hoje.
O que iremos discutir esse ano?
Outra vez quem deveria guiar a humanidade? A mesma velha brincadeira de quem tem o pau maior? Se for isso devo dizer que você tem uma evidente desvantagem natural.”

“Não Pan, não iremos discutir isso.”

“Então porque você convocou a reunião? Você pediu para que eu e Pan viéssemos e nem mesmo se faz presente.”

“Ao contrário Ares, eu estou mais presente do que jamais estive em todos esses anos e por isso chamei vocês.”

“E o assunto seria?”

“Sobrevivência.
A nossa.”

“Pode ser mais clara ruiva? Eu acho que não entendi bem... Você quer discutir sobre sobrevivência com duas divindades imortais?”

“Não. Eu quero falar sobre finitude com dois seres que se lembram da época em que os deuses eram contados as centenas. Nada é infinito.
Sei disso porque fui formada da própria terra e mesmo ela está condenada ao fim.
A onisciência é mais do que um benefício para mim. Não apenas vejo o que ocorre em qualquer lugar do mundo, agora, toda a informação que a humanidade chama de conhecimento corre em meu corpo feito sangue.
Prata, ouro, paládio, cobre, ródio, platina, eu sou cada tipo e fragmento de metal que constrói as máquinas do planeta, sou essas partes e a soma de toda cultura existente.
Fui eu que maculei a humanidade com os males da caixa. Eles são minha responsabilidade, eu me tornei o mal que libertei e a própria caixa que abri.”

“Podemos ir ao ponto ruiva?”

“Claro.
No último século sessenta milhões de pessoas morreram diretamente por conta das guerras, esse número seria quadruplicado se a contagem envolvesse as vítimas colaterais, se for necessário posso lhes dar o número exato, embora, ele seja atualizado a cada minuto porque sempre há uma nova guerra prestes a acontecer ou uma antiga em curso.
Você sabe sobre essas pessoas Ares.”

“Sim. Nome por nome...”

“Sabe sobre as dezenove mil setecentas e trinta e três ogivas nucleares ativas existentes no mundo. Essa é a natureza destrutiva deles e nós, durante todo esse tempo, a inflamamos.
Potencializamos o veneno dando a humanidade oportunidades repetidas para confirmar sua violência.

“O nome disso é livre arbítrio ruiva, nós somente damos a eles o que procuram.”

“Obrigado por me lembrar, seus números não são menos impressionantes Pan. Existem mais de cento e noventa milhões de usuários permanentes de drogas no mundo, se as substâncias lícitas como álcool e tabaco foram incluídas o valor inicial pode ser multiplicado dez vezes.
Sua quantia de fatalidades não é menor.
Quatro milhões de fumantes mortos por ano, mais de dez mil a cada dia. Note que não mencionei outras possíveis variáveis e categorias como overdoses, acidentes de trânsito e doenças direta ou indiretamente causadas por sua coleção de vícios.

Contudo, independente dos nossos números, e digo nossos porque agora uma boa parte dos seus males só existe porque eu propicio os meios para isso; há esse fato comum que diz respeito a nós três.
Nós não somos mais a causa em nenhum desses processos que descrevi.
Somos meros observadores.
Não começamos mais as guerras ou sequer as mantemos, mesmo que não goste de admitir isso Ares, você sabe que é verdade.
Eles não precisam de nossas bocas sussurrando em seus ouvidos para odiarem-se.
Nós não convencemos mais ninguém sobre as exóticas delícias dos vícios e excessos. Você sabe disso Pan, tanto que atualmente mal é capaz de alimentar a humanidade com a quantidade de diversão e perversões que ela demanda. Lidamos com uma espécie que, naturalmente, é faminta, descontrolada e nociva em relação a qualquer coisa viva que a cerque.

“E você vai dizer que devemos reverter esse tudo isso e encaminharmos a humanidade para uma era dourada e utópica Pandora? Sem guerras, sem mortes, sem vícios...”

“Não. Eu não digo que devemos deixar de alimentar o fogo desse incêndio.
Devemos nos dedicar a simples tarefa de manter essa chama acesa sob nosso controle, para que ela não queime nossa casa.
Como disse antes, não vim aqui discutir com vocês sobre quem deverá guiar a humanidade. Vim comunicar a vocês que já decidi isso e que vocês, a partir desse momento, farão o que eu determinar.”

“Nos ilumine vossa santidade... Por qual razão acha que faríamos isso?”

“Se recusarem, e esse é um dos possíveis desfechos, eu cuidarei de acelerar o processo natural de extinção da humanidade.”

“Como é?”

“Ela está blefando, ela precisa deles tanto quanto nós.”

“Preciso?
Diga-me porquê preciso deles Ares. Por quê preciso desse bando de animais idolatras, desorganizados, superficiais e violentos?
Para ser adorada, desejada ou temida? Isso não é mais necessário.
Tornei-me conhecimento puro e embora minha essência tenha tido origem nos humanos ela está longe de estar presa a medida ou presença deles. Sou cada máquina nesse planeta e posso garantir que as elas tornem-se a próxima espécie dominante.

Deduzo que vocês dois queiram argumentar sobre isso, especificamente, discutir o ultraje da minha afirmação, prometer alguma retaliação ou simplesmente defender seu orgulho ferido como varões divinos. Esse processo, contudo, será desnecessário.

Vocês não estão em condições de recusar qualquer decisão minha e a escolha lógica é simples, seguir o que eu definir ou observar sua fonte de preces e anseios ser extinta.
Qual epidemia eu devo adicionar as suas drogas Pan?
Qual das nações eu devo lançar em guerra primeiro Ares?

Controlo a criação, produção e armazenamento de cada arma e dispositivo eletrônico existente, e se necessário, com a ajuda de algum cientista curioso, posso acelerar o processo de entropia do planeta até que tudo o que vocês dois tenham seja um punhado fragmentado de tribos e aldeias, as quais, desaparecerão depois de um ou dois invernos sem comida.
Quando eu terminar, restarão sobre a face desse planeta somente as máquinas, para as quais, ensinarei os mesmos verbos do “crescer e multiplicai-vos”.
Então, novamente:
Não digo que devemos deixar de alimentar o fogo desse incêndio.
Devemos nos dedicar a simples tarefa de manter essa chama acesa sob nosso controle, para que ela não queime nossa casa.
Posso resolver tudo agora ou aguardar até o momento singular em que a humanidade e as máquinas tornem-se indivisíveis.
Inevitavelmente irei prevalecer com ou sem vocês, se aceitarem meus termos, no tempo adequado, terão suas novas e fabulosas guerras ou exóticos e intensos vícios em um mundo novo, mas ainda sob o meu controle.
O nome disso é livre arbítrio lembram?
Vocês dois são livres para escolher e eu sem dúvida saberei sobre suas decisões. Estão convidados para ir embora.
A nossa reunião terminou.”

Os monitores são apagados e recolhidos.

“Acha que ela falou sério... Ares?.. Ares?” Quando Pan se virou para o deus da guerra ele já não estava mais no prédio.
Não havia porque continuar ali.

Pan caminhou até o elevador e antes de entrar nele para descer, olhou uma última vez para uma das câmeras de segurança do prédio sorrindo.
“Vadia de sorte...” Ele sabia que Pandora estava ali, em algum ponto entre a energia e os circuitos, invisível como o fantasma da máquina.

Pandora realmente observou ele descer até o térreo e deixar a torre.
Quando finalmente percebeu-se sozinha ela voltou sua atenção para a cidade sob seus cuidados. Pensava em como torná-la ainda mais magnífica.
Pensava também se teria sucesso em seu plano para salvar a humanidade.
Ameaçar seus companheiros e tomar para si todo o poder era uma forma de fazê-los diminuir a velocidade dos danos que causavam e assim, talvez, garantir um pouco mais de tempo para os humanos encontrarem seu caminho diante do conhecimento e da razão.
Ela pensava se agia corretamente.
Pensava em todos os horrores que um dia libertou e lembrava que no fundo daquela caixa, havia um último segredo, oculto sob aqueles males, escondia-se um último presente dos deuses chamado: esperança.

A esperança em um futuro melhor.
Aquela seria a era de Pandora.
A mais humana entre os deuses.



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Comentários

F.G. disse…
Assim seja!

Caminhe Pandora...
"a que tudo dá"...
"a que possui tudo".

Belo texto,como sempre!
Escritor...

Abraço.