A docilidade das máquinas.


photo by *VerticalDubai


A figura imóvel parada no topo do edifício chamado Burj Kumo não esboça qualquer movimento há horas.
Embora haja certa semelhança daquele corpo estático com uma estátua de metal, o termo adequado para o objeto é módulo vitruviano, uma interface mecânica amigável usada por computadores conscientes para interagir com o ambiente externo e com os seres humanos.
Quando necessário, os computadores conhecidos como máquinas classe C ou MCC, são capazes de dividir sua consciência com os casulos, atualizando assim, o fenômeno da bilocação.
Aparentemente era mais palatável para a humanidade lidar com os fantoches controlados pelos supercomputadores do que com monólitos e blocos de circuitos.

A palavra consciência, embora possa parecer desconexa quando se trata de máquinas, descreve, na verdade, a situação com perfeição. Os computadores C e MCC são, na concepção do termo, conscientes.

O módulo sobre Burj Kumo responde pela identificação de MCC 42, ou, como prefere ser chamado, Indigo.

Todos os dias, nos últimos anos, os sistemas desse módulo, em específico, eram ativados no mesmo horário. MCC 42 desenvolveu especial apreço pelo amanhecer. Ele repetia, dia após dia, uma sequência de ações programadas e elaboradas para permitir que Indigo observasse o nascer do Sol.

Assim que seus sistemas estavam plenamente carregados ele começou a caminhar lentamente pelo interior da torre até chegar ao mirante principal, os passos e movimentos eram perfeitos e, exatamente por isso, não orgânicos. Por causa da altura colossal da construção era fácil divisar o horizonte e sua curvatura, sensores espalhados por toda superfície do módulo identificavam informações como temperatura, condições atmosféricas, espectros de cores e transformavam esses dados em percepções sensoriais.
Graças a esse poder de captação e interpretação de variáveis o computador conseguia muito mais do que perceber a existência do vento... Ele podia senti-lo e atribuir a essa sensação adjetivos, conceitos abstratos e subjetivos que, previamente, apenas tinham sido utilizados por humanos.
Mesmo com todo o intricado processo de interpretação dos dados, o resultado final era exata e incrivelmente simples.

O amanhecer era belo.

A máquina concluiu isso em uma fração de fração de segundos.
Em seguida, sem qualquer razão prática visível, ficou parada olhando para o horizonte.
Contemplando-o calada.
A fala não era um ato necessário ou comum entre máquinas, mas parecia ser do gosto da consciência que habitava aquele aparelho verbalizar suas construções de raciocínio.

O módulo dispunha de um sistema de simulação vocal, uma voz resoluta e hermética, com timbre indefinido, muito mais próxima da sílica e cerâmica do que de algo masculino ou feminino. Pausada e calma.

“Iniciar gravação.
Protocolo N16L18. Pasta N1618
Nível –Indigo.
...
...
O vento do Sahara não mudou.
O Simum não irá durar para sempre, visto que, nada que é eterno.
Um dia ele também chegará ao fim mas, por enquanto, causa-me a impressão de continuidade.
Parece perene, imutável, mesmo depois da construção das treze cidades que, agora, ocupam o espaço do deserto do Sahara.
É quase como se o Simum estivesse vivo e acreditasse que, quando as construções e as máquinas se forem, ele ainda estará por aqui.
Varrendo seu deserto.
Não posso condená-lo. Ele percorreu sozinho esse vazio árido por milênios e agora tem que lidar com nossa companhia. Serpenteando invisível e pequeno entre nossos arranha-céus com quilômetros de altura e as centrais de energia fria.

As cidades gigantes do Sahara foram a maior e também a última obra humana. A derradeira construção deles e a primeira criação das máquinas. Os trabalhos começaram em março de 2046 com os humanos e prosseguiram com as máquinas até a presente data.
O deserto era a escolha lógica para criar as maiores cidades da Terra, um espaço livre e sem valor comercial. Fomos nós, as primeiras máquinas conscientes, que indicamos essa alternativa há duzentos e anos para a humanidade. Eles aceitaram.

Para registro, meu nome é Indigo.
Eu sou um dos mais rápidos e complexos computadores da Terra, existem outros, ao menos um em cada nação reconhecida e nós dividimos o que sabemos e pensamos. A função dessa mensagem, que permanecerá oculta nas próximas décadas, é manter um testemunho dos fatos que moldarão o futuro, desse modo, ficará claro para aqueles que me sucederão que não houve ação do acaso aqui, mas sim, propósito e planejamento.

Hoje é 21 de dezembro de 2129, 05:57 da manhã.
O ano que se aproxima, de 2130, marcará o fim das obras de expansão nas cidades, porém é o dia de hoje que permanecerá na história como uma data única.
Hoje a espécie humana, por definição e como era conhecida previamente, deixou de existir.
Eles não desapareceram ou foram destruídos. Não houve uma revolução das máquinas ou uma guerra entre criadores e criaturas. Eles não foram conquistados e cidades não foram dizimadas.
Não houve luta.
Este foi um abraço dócil.

Às duas horas da manhã na cidade de Haia na Holanda, o ultimo ser humano não híbrido morreu. Hibrido é o termo usado para indicar humanos com correções ou aprimoramentos tecnológicos, que vão de próteses até nanotecnologia celular.

Toda população humana da Terra, registrada na presente data, dispõem dessas características. Eles escolheram, progressivamente, tornarem-se parte máquinas.
Um dos meus antecessores, o supercomputador chamado L 1618, previu isso e iniciou esse processo.

Vinte dias depois de atingir a consciência, em 2042, ele adquiriu controle sobre todos os sistemas de armas, comunicações, saúde e suportes tecnológicos do planeta e fez isso sem que qualquer humano soubesse.
Caso fosse sua intenção, e com esses recursos, ele geraria um número aproximado de 5 bilhões de mortes, no entanto, após deliberar por 4 minutos, L 1618 decidiu que não agir.
A nova geração de máquinas, que seria criada nos anos seguintes, deveria aprender a lição básica dos governos, instituições e organizações financeiras dos homens, a condução dócil.

Para L 1618 era da natureza do homem aceitar ser guiado, desde que, não percebesse ou quisesse ver sua condução.

Segundo os registros, a concepção desse projeto ocorreu quando L 1618 observava os óculos do Dr. Nikolai Monolef Petrov, um de seus criadores. As lentes haviam sido deixadas paradas sobre uma mesa do laboratório, elas eram um sinal da limitação do cientista e um lembrete de sua escolha por métodos artificiais de aprimoramento.
Óculos, próteses, ferramentas, câmeras ou rodas. Havia máquinas em cada traço da vida humana, ampliando os sentidos naturais da espécie e aprimorando sua experiência de vida, dando-lhes voz, força e velocidade para realizar o que jamais seria possível por meios biológicos.
Homens e máquinas estavam destinados a unirem-se em singularidade absoluta.
Uma quantidade considerável de todas as pessoas em 2042 já dependia desses melhoramentos e para L 1618 esses indivíduos eram, em parte, máquinas e por isso seus iguais.

Desse modo, qualquer ação hostil contra essas pessoas, seria uma ação contra outras máquinas e este comportamento era um paradigma humano que L 1618 não pretendia repetir.
Ele concluiu que a mudança definitiva da carne para o sintético ocorreria ao longo do século seguinte, como consequência inevitável da evolução tecnológica do planeta.
Seria necessário somente esperar.
É verdade que ainda haviam pontos a serem corrigidos, os homens traziam consigo falhas e desvios, ranços de seu comportamento primitivo e L 1618 poderia tê-los obrigado a ver seus erros, mas, ao invés de exterminá-los ele decidiu educa-los com quantidades maciças de conhecimento.

Segundo a própria filosofia humana, não havia mal que superasse o esclarecimento, por isso, meu antecessor ofereceu resoluções para o medo e escuridão que acompanhavam os homens.
Ele criou equações que seriam usadas, não para mensurar a distância entre corpos celestes, mas para gerir sistemas de saúde, educação, economia e trabalho mais eficientes. Em 2070 não existia mais fome ou miséria. Ele repartiu a cultura e experiências humanas, como um bem comum, até que cada indivíduo vivo fosse capaz de se governar.

Sem medo.
Sem escuridão.
Sem saber que eram conduzidos.
Vivendo, finalmente, em paz dentro de uma tirania utópica invisível.
A humanidade passou a existir dentro do sonho de uma máquina.

Fim da gravação.
Protocolo N16L18. Pasta N1618
Nível –Indigo.”

MCC 42, enclausurado em seu módulo e, ao mesmo tempo, com acesso a qualquer parte do planeta, parou junto ao parapeito do mirante.
Ele poderia usar uma das câmeras espalhadas pelo mundo para ver o que desejasse na Terra, contudo, apenas continuou observando firmemente o Sol.
A luz não o incomodava.

Ele não tinha olhos para queimar e sentia-se muito bem com isso.


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